Rebeca Andrade, a ginasta brasileira a quem Simone Biles passou a sua coroa
Naomi Baker/Getty
Considerada a melhor ginasta do mundo - enquanto Simone Biles esteve ausente -, a brasileira Rebeca Andrade, de 24 anos, não teve caminho fácil até chegar ao momento em que se confrontou pela primeira vez com a sua rival, nos Mundiais de Antuérpia. E, apesar de sair da Bélgica com menos ouros do que a norte-americana, recebeu desta o testemunho da sucessão
E eis que Simone Biles tirou a coroa imaginária da sua cabeça e colocou-a na de Rebeca Andrade. O gesto, que está a correr mundo, tem a leitura óbvia da rainha que passa o testemunho à sua sucessora, mas ganha uma força simbólica extra por ter sido feito minutos antes da atleta norte-americana receber a medalha de ouro no solo, e a brasileira a de prata. Terá Biles querido dizer ao mundo que, por mais pódios que venha a conquistar, há uma nova rainha da ginástica artística mundial?
As opiniões dividem-se não só na ânsia de voltar a ver Biles a brilhar após um afastamento de dois anos, mas também porque, ao todo, em seis participações em Campeonatos do Mundo, a norte-americana tem 22 medalhas de ouro num total de 29 pódios. Um recorde difícil de ultrapassar.
Mas este texto não é sobre Biles, de 26 anos, mesmo que tenha fechado os Mundiais, em Antuérpia, com mais duas medalhas de ouro, conquistadas na trave e no solo, depois de já o ter alcançado por equipas e no all-around. É sobre uma menina natural de Guarulhos, São Paulo, que cresceu numa família humilde, com sete irmãos, e começou a praticar ginástica com quatro anos. Enquanto Rebeca fantasiava com saltos e piruetas, a sua mãe solteira, Rosa Santos, empregada doméstica, tratou de alimentar-lhe o sonho com a ajuda do filho mais velho e dos treinadores, sobretudo quando as dificuldades financeiras mais apertaram.
Rosa reconheceu cedo as boas capacidades motoras da filha, porque, pudera, quando ela começou a gatinhar, cedo aprendeu a subir as escadas do beliche para saltar para o colchão.
Aos quatro anos, a tia de Rebeca levou-a para o Ginásio Bonifácio Cardoso e ela encantou desde logo os professores com as suas capacidades. A partir daí, Emerson, o irmão mais velho, ficou responsável por levá-la aos treinos de ginástica. Costumavam ir de autocarro, mas quando Rosa não conseguia deixar o dinheiro para os bilhetes, chegaram a fazer o percurso, de quase duas horas, a pé. Até que Emerson recuperou uma bicicleta comprada num ferro-velho e com ela passou a levar a irmã.
Aos 10 anos, Rebeca deixou a família para viver em Curitiba e treinar profissionalmente. “Nessa época, eu já morava com os meus treinadores durante a semana, então a mudança não foi tão impactante”, disse, numa entrevista à “Forbes”. O talento era visível até para a pequena ginasta que confessou, na mesma entrevista: “Eu via aquilo como uma forma de melhorar a vida de toda a minha família, então fiz tudo com muito amor.” Retribuindo o esforço que fizeram por ela, assim que conquistou as primeiras medalhas nas grandes competições, a atleta brasileira comprou um apartamento mais confortável para a família, em Guarulhos. Em 2011, Rebeca iniciou um novo ciclo, ao receber o convite para treinar na equipa juvenil do Flamengo, que ainda representa.
Num trajeto iniciado com espinhos, a rosa foi desabrochando, mas os espinhos não desapareceram. Ao longo da carreira, Rebeca teve três lesões que adiaram o sonho do pódio olímpico.
Em 2012 fez a estreia internacional, com 13 anos, no Campeonato Pan-Americano Júnior, onde conquistou uma medalha de prata por equipas e o ouro nas provas de salto e solo, além do bronze na trave. Ao estrear-se na elite, tornou-se campeã do Troféu Brasil de Ginástica Artística e no ano seguinte, em 2013, continuou a somar medalhas no currículo.
Em 2014, uma fratura no dedo do pé obrigou-a a uma cirurgia e impediu-a de ir às Olimpíadas da Juventude, em Nanquim, na China; no ano seguinte, estreou-se como sénior, no Taça do Mundo de Ginástica, em Ljubljana, Eslovénia, onde ganhou o bronze nas paralelas assimétricas. Mas, em junho, um rompimento no ligamento cruzado anterior do joelho direito impediu a presença nos jogos Pan-Americanos e a estreia nos Mundiais de Glasgow, na Escócia. De 2016 a 2019, Rebeca Andrade entrou em várias competições nacionais e internacionais e estreou-se nos Jogos Olímpicos, realizados no seu país, o Brasil, em 2016.
Sempre com resultados muito satisfatórios, as expetativas estavam altas para os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, mas, um ano antes, voltou a lesionar-se no joelho durante o Campeonato Brasileiro de Ginástica Olímpica, o que impediu a sua participação no Mundial daquele ano e dificultou a garantia de uma vaga olímpica, por equipas, para a seleção brasileira. Nesse período, Rebeca chegou a pensar em desistir do sonho, mas, mais uma vez, a sua mãe teve um papel primordial. “Ela disse que eu era capaz, que sabia que eu conseguiria. E ela estava certa”, contou a jovem ginasta à “Forbes”.
Após a recuperação e a garantia da presença nos JO de Tóquio, Rebeca Andrade inicia um novo ciclo de vitórias na carreira.
Fez história em Tóquio, ao ser medalha de ouro no salto e conquistar a prata no all-around. Tornou-se a primeira atleta brasileira com duas medalhas nos mesmos JO. Sempre a somar, no Mundial de 2021 bateu novos recordes ao ser a primeira brasileira a conquistar mais de uma medalha num campeonato do Mundo de ginástica artística, após pendurar ao pescoço o ouro no salto e a prata nas paralelas assimétricas. Em 2022, novo Mundial, desta feita em Liverpool, e mais uma medalha de ouro, no all-around.
E chegamos a 2023, aos Mundiais de Antuérpia, que terminaram este domingo. Como se comportaria Rebeca perante o regresso de Simone Biles?
Dos seis pódios possíveis, a brasileira esteve em cinco, sempre na companhia da norte-americana. Chegou à prata por equipas, no solo e no all-around, onde foi destronada pela rival norte-americana, e conquistou o bronze na trave (aparelho onde nunca tinha medalhado). Mas a glória estava guardada para o fim. Na prova individual de saltos, onde Biles tinha rebatizado o salto Yurchenko com duplo mortal encarpado para “Biles II” assim que chegou à competição, Rebeca não vacilou. Bicampeã mundial do salto, a brasileira que, em 2021, venceu no Mundial e nas Olimpíadas, executou as suas duas tentativas de forma quase sempre perfeita, enquanto Biles ficou sentada no chão, na saída do “Biles II”, tendo sido naturalmente penalizada por isso.
Rebeca Andrade tem 24 anos e passou a ser a primeira brasileira a estar presente em três pódios numa edição dos Mundiais, competição na qual acumula, agora, sete medalhas. Ela e Simone Biles são consideradas as duas melhores e mais completas ginastas da atualidade e corresponderam no Mundial somando ao todo dez pódios na competição. O próximo confronto entre as duas está, à partida, marcado para os JO de Paris, no próximo ano. Pode ser o último de Biles, mas a coroa parece já estar entregue.