Dois africanos batem dois recordes no espaço de duas semanas. E todas as atenções estão no que traziam calçado
Michael Reaves
A Adidas e a Nike conseguiram “roubar” as luzes dos holofotes dos dois atletas que no espaço de duas semanas superaram de forma retumbante os recordes mundiais da maratona, masculino e feminino. O queniano Kelvin Kiptum correu com um protótipo da marca norte-americana, o Alphafly3 e ficou a 35 segundos de baixar das duas horas, enquanto a etíope calçou os Adziro Adios Evo Pro 1, da marca alemã, para tirar mais de dois minutos à marca anterior. A “batalha” pelas sapatilhas perfeitas para correr a distância está ao rubro e a polémica sobre a ajuda que podem dar aos atletas ainda agora começou
Para um recorde ser homologado, seja ele qual for, tem de haver regras. Até pode ser só uma, mas tem de existir porque só é possível fazer uma avaliação correta sobre uma qualquer ação, comparando-a com outra, com base em princípios pré-estabelecidos.
Na maratona, as principais regras foram impostas pela IAAF (Federação Internacional de Atletismo] e para reconhecer um recorde mundial é preciso que o percurso tenha uma distância máxima entre a partida e a chegada de 50% da distância total da prova — 42,195 km — e um desnível na topografia de, no máximo, 1/1000 da distância total, um metro por quilómetro (um máximo de 42 m). Mas existem outras regras, como uma dos Regulamentos do Calçado Atlético, que diz que os desempenhos no atletismo são alcançados através da primazia do esforço humano sobre a tecnologia das sapatilhas. Será que ainda é assim?
Neste domingo que passou, o queniano Kelvin Kiptum bateu, em Chicago, o recorde mundial da maratona (2h00m35s), ficando a preciosos 35 segundos da mítica barreira das duas horas. Foi apenas a terceira maratona da carreira deste jovem de 23 anos, que se viu obrigado a acelerar o ritmo nos 10.000 metros finais, por conta de um mau trabalho das lebres. “A minha intenção ao vir a Chicago era bater o recorde deste circuito mas por sorte acabei a bater o recorde do mundo, que à partida não tinha na cabeça”, garantiu no final da prova.
O facto de, pelo menos nos últimos 10 anos, todos os recordes desta prova pertencerem a atletas africanos - Kiptum conseguiu tirar 34 segundos à melhor marca que pertencia ao compatriota Eliud Kipchoge -, poderia levar os mais distraídos a julgar o feito “normal”. Afinal, há menos de um mês, o recorde mundial da maratona feminino, também foi “arrasado” pela etíope Tigist Assefa, ao vencer com um tempo de 2h11m52s a Maratona de Berlim. Mais uma vez, um olhar superficial levar-nos-ia a pensar, é uma atleta africana, que correu num terreno muito propício para bater recordes mundiais. À exceção da marca realizada pelo marroquino (naturalizado americano) Khalid Khannouch, de 2:05:37, em Londres 2002, todos os outros recordes batidos no século XXI, aconteceram em Berlim.
E se Kiptum foi o primeiro homem a baixar das 2h01 minutos , Assefa, de 26 anos, tirou mais de dois minutos à anterior marca, que pertencia desde 2019 a Brigid Kosgei (2h14m04), fazendo também aquilo que era visto como algo impensável. Dois feitos separados por duas semanas, realizados por dois africanos, que pouco ou nada têm em comum na sua história de vida.
No entanto, há algo que os une e separa ao mesmo tempo. Ambos os atletas correram com sapatilhas especiais que levaram a rivalidade entre a Adidas e a Nike para um outro nível. Assefa usou o modelo da Adidas, o Adizero Adios Evo Pro 1, que pesa apenas 138 gramas e que é suposto ser utilizado apenas uma vez, já que após 42km perdem bastante eficácia. Se dúvidas houvesse sobre a importância deste par de ténis na superação do recorde, a própria Assefa começou por desfazê-las ainda antes da prova, ao afirmar: “Este é o sapato de corrida mais leve que alguma vez usei. A sensação de correr com eles é uma experiência incrível, como nunca senti antes". E, no final, acabou com todas as interrogações ao levantar orgulhosamente um dos seus novos amigos acima da cabeça e beijando-o, na linha de chegada.
A Adidas superou-se e, aparentemente, também a sua eterna rival, a Nike. Mas a “vingança” demorou apenas duas semanas, quando Kelvin Kiptum foi visto a bater o recorde da maratona masculina, em Chicago, com um par do protótipo Nike Dev 163, três minutos à frente de Benson Kipruto, que terminou em 2º lugar, imagine-se, com os Adizero Adios Evo Pro 1 calçados.
A vencedora da corrida feminina, em Chicago, Sifan Hasan, que garantiu também o recorde do percurso com o segundo tempo mais rápido da história, também usava um par Nike Dev 163.
Quem gosta de seguir esta guerra de marcas, já deve estar a roer as unhas, para ver do que as marcas vão ser capazes a seguir. Porém, há uma pergunta que se impõe: este tipo de calçado, sendo notoriamente uma ajuda na performance dos atletas, cumprem os Regulamentos do Calçado Atlético?
Um dos princípios deste regulamento diz que os desempenhos no atletismo são alcançados através da primazia do esforço humano sobre a tecnologia das sapatilhas de atletismo e dos avanços na mesma. Será que com estas super sapatilhas a "primazia do esforço humano sobre a tecnologia" continua a prevalecer, ou estarão elas a contribuir demasiado para o desempenho dos atletas?
Que ambos os calçados cumprem os critérios quanto à forma, materiais e limites da altura da sola, por exemplo, não parece haver dúvidas. Outra das regras diz que os modelos devem estar disponíveis para compra pelos concorrentes há pelo menos um mês, a menos que o Diretor Executivo da World Athletics aprove um prazo diferente. Os Adizero Adios Pro Evo 1 ficaram disponíveis para compra a 14 de setembro de 2023, com um stock extremamente limitado e pelo preço de €500. Ou seja, menos de um mês antes de Assefa os ter utilizado; mas, dada a homologação do recorde, é provável que tenha sido aprovado um prazo diferente.
Já os Nike Dev 163 não estão atualmente à venda ao público, mas foram aprovados pela World Athletics para utilização em desenvolvimento até dezembro de 2023. A Nike confirmou entretanto que estas sapatilhas são as Alphafly 3, à venda em janeiro de 2024.
Como diz o ditado, “cada um sabe onde o sapato lhe aperta”, por isso resta saber até onde vai a IAAF deixar chegar esta “guerra” das marcas, por sapatilhas capazes de fazer “voar” os atletas e os recordes.