O Centro de Alto Rendimento para o remo, em Foz Côa, nunca lá teve um estágio das seleções nacionais. E está por pagar a quem o projetou. O líder cessante da federação garante que não há condições técnicas no Rio Douro para estágios. O seu antecessor, que encomendou o projeto, não é da mesma opinião. A infraestrutura teve, em 2023, uma taxa de ocupação de 40%, a melhor de sempre - mas não é à conta de remadores
As constatações de Pedro Fraga são perentórias: “Uma estrutura desta magnitude, só para o remo em Portugal, é uma coisa única (...), podemos combinar o que já existia de bom, a água, com uma série de infraestruturas de topo mundial.” As frases constam do testemunho deixado pelo antigo remador olímpico, campeão europeu e vencedor de medalhas em Taças do Mundo, no site oficial do Centro de Alto Rendimento (CAR) do Pocinho, inaugurado nas beiças do rio Douro em 2016, com a pompa da presença de Marcelo Rebelo de Sousa. Mas, “nos últimos anos”, a “única federação nacional” a usar a infraestrutura que custou cerca de 8,4 milhões de euros, e até “várias vezes” por cada volta ao calendário, foi a de futebol.
A revelação é de Pedro Duarte, vereador da Câmara Municipal de Foz Côa, proprietária do espaço que dispõe de 85 quartos, ginásio, piscina coberta e espaços de convívio para uma capacidade máxima de 180 pessoas, além da proximidade ao “plano de água” que Pedro Fraga, competidor nos Jogos de Pequim, Londres e Tóquio, elogiou no seu depoimento como a “grande qualidade deste local”. O CAR do Pocinho, contudo, jamais recebeu qualquer estágio das seleções nacionais da modalidade para a qual foi pedido, projetado e construído.
O CAR do Pocinho, inaugurado em 2016, teve um custo de 8,4 milhões de euros e 85% do valor veio de fundos europeus
Não se trata de um segredo. Nem é negado por Luís Ahrens Teixeira, presidente da Federação Portuguesa de Remo (FPR). “Nos últimos 11 anos, por questões técnicas, porque os treinadores nacionais nunca quiseram. Se eles quisessem, eles é que decidiam os estágios, não sou eu”, resume o cessante líder da entidade cujo sucessor será eleito, este sábado. Nas convocatórias publicadas pela entidade, ao longo dos anos, para os estágios das seleções, os locais mais vezes escolhidos foram Montemor-o-Velho, no CAR da canoagem, e em Avis. No do Pocinho, em Foz Côa, “o sítio, tecnicamente, não é bom”, advoga o líder da FPR, argumentando que “o Douro” onde se construiu um dos 14 CAR de Portugal “é péssimo para a prática do treino de alta competição”.
No cargo desde 2013, a execução do projeto precede a vigência de Luís Ahrens Teixeira na federação. Porém, o seu antecessor e responsável por encomendar o mesmo, António Rascão Marques, defende ao Expresso as condições de treino no CAR do Pocinho: “São ótimas, dado as valências que compõem o mesmo. Não falta nada para se ter treinos de alto nível. Não há problemas técnicos que impeçam as equipas nacionais de lá treinar.” A problemática maior que o anterior presidente diz existir “são interesses pessoais acima dos interesses do país”, centrando a sua mira em quem lhe sucedeu no remo, porque “tendo um hotel em Avis” começou a “levar” para lá “as equipas estrangeiras que queriam estagiar em Portugal” e “nunca mostrou o Pocinho a essas equipas, pois de certeza que perderia clientela”.
Os dedos apontados
Rascão Marques renunciou ao seu mandato em 2012 e noticiou-se então que deixou a federação com uma dívida a rondar o milhão de euros. À época, gabou a obra no Pocinho como “uma estrutura do melhor que existe no mundo”. Questionado sobre a carência de visitas do remo ao Centro de Alto Rendimento, defende-se com uma acusação contrária ao assumido pelo seu sucessor: “Depois que abandonei a FPR, as equipas nacionais não treinaram lá, salvo algumas exceções, porque a Direção da Federação não quis.”


O seu sucessor não evade o assunto. Luís Ahrens Teixeira é um dos donos da Herdade da Cortesia, o hotel citado. O ainda presidente recentra as razões que invoca para os treinadores das seleções, nacionais e estrangeiras, terem Avis, onde está o seu negócio, como um dos locais preferenciais para realizarem estágios. “Todas as seleções de canoagem e de remo, ou a maior parte, que vêm para Portugal, treinam em Castelo de Bode, na Agueira e em Avis. Nenhum treina em Montemor e no Pocinho, sendo que é mais barato? A resposta: questões técnicas.” Pertencente ao quarteto que em 1994 conquistou a ainda única medalha (de bronze) de Portugal em Campeonatos do Mundo de remo, para Ahrens Teixeira “a questão” é uma: “Porque é que essas seleções preferem a Aguieira, Castelo de Bode e Avis? A razão o plano de água.” E recorre-se do puxa-corda entre a procura que estimula a oferta. “Depois, os privados, e eu sou um deles em Avis, onde fiz o meu empreendimento há 15 anos, adicionaram ao plano de água um conjunto de condições.”
Inversamente, é nas características do Pocinho que Rascão Marques refugia a sua defesa para a escolha do local, “fruto de discussão com vários técnicos nacionais e estrangeiros”. A par de indicar a necessidade do remo em ter um lugar para “treinos de inverno”, cita as mais importantes: “A qualidade da água, a quilometragem que os remadores podiam fazer nos seus treinos de longa distância, o vento que soprava, e a quantidade de dias de chuva que habitualmente havia naquela região e o tráfico marítimo de barcos de recreio.” De novo, quase tudo é contraposto pelo atual presidente da federação. “No inverno, o Douro recorrentemente tem cheias e correntes impossíveis para a prática do treino e, no verão, tem os barcos gigantes do Douro Azul [empresa que organiza passeios marítimos e cruzeiros] e, quando passa um barco desses, acabou o treino”, diz, criticando ainda a distância — “são mil metros a pé” — que separa os quartos dos atletas da água.
Falta pagar à autora do projeto
Às divergências entre os últimos dois líderes da FPR — o próximo será Luís Faria, candidato único às eleições de sábado — junta-se outro imbróglio, este judicial, movido pela autora do projeto do CAR do Pocinho. Paula Teles reclama uma dívida de pouco mais de 570 mil euros, mas, em janeiro, o Tribunal Central Administrativo do Sul rejeitou o recurso que a engenheira apresentou contra a decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa em isentar a federação desse pagamento.
Quase uma década após a inauguração da obra, a engenheira a quem Rascão Marques reconhece “um grande estudo feito” para a construção do CAR, entretanto distinguido com vários prémios de arquitetura, só recebeu 100 mil euros da FPR relativos “à primeira fatura dos honorários”, explica Ahrens Teixeira, porque “houve um contrato-programa com o IPDJ” para se pagar à visada. “O resto, palmadinhas nas costas, havemos de ver como é que se fez, e nunca se viu”, lamenta. Do lado autárquico, o vereador Pedro Duarte expõe que “o município não pagou à sociedade autora o projeto, pois não o encomendou, não negociou os seus termos, nem assumiu a obrigação de o pagar”, escudando-se nos “factos alegados” pela autora “na sua petição inicial” para indicar que “tal encomenda foi feita pelo, à data, secretário de Estado do Desporto e pela Federação Portuguesa de Remo”.
A autarquia cita essas palavras para informar que foi Laurentino Dias, então detentor do cargo, quem “incumbiu” Paula Teles de “apresentar a proposta, com o respetivo orçamento” e, “para tal”, o secretário de Estado “indicou qual seria exatamente a encomenda, nomeadamente as características e necessidades a acautelar”. Ao Expresso, Laurentino Dias contrastou que o CAR do Pocinho “foi construído por indicação da Federação de Remo” e que “o Governo, nesse como em todos os outros” centros, “acompanhou de forma permanente e empenhada” o decurso da obra. Garante que não encomendou “nunca nenhum estudo ou projeto”. Mas Paula Teles dá a sua versão: “A solicitação foi feita em conjunto presencial pelo secretário de Estado do Desporto, Câmara Municipal e Federação Portuguesa de Remo.”
Quanto à verba ainda devida, Laurentino Dias nada disse. E o município justifica que “não pagou à sociedade autora o projeto, pois não o encomendou, não negociou os seus termos, nem assumiu a obrigação de o pagar”. Já Paula Teles “não [quer] acreditar que alguém queira ter um projeto, usá-lo, ter em consequência uma obra extraordinária, que ganhou vários prémios, e não pague esse projeto”. Por escrito, a engenheira queixa-se de que “nem devia ser necessário ir a tribunal sobre isto” e não tem dúvidas de que a responsabilidade toca à autarquia. Critica o “caso típico” de “uma entidade pública” que “chuta a responsabilidade para outra, e essa para outra ainda”, descrevendo o caso como “um exemplo de alguém que confiou no Estado e que depois, por razões que não controla, vê o seu trabalho a ser utilizado e o Estado a não querer pagar”. Quando foi contratada, recorda, “aceitaram os honorários” e “todos tinham muita urgência, era uma questão de interesse nacional”. Agora, é-lhe “absolutamente claro” que se trata de “um inadmissível enriquecimento sem causa”.
A infraestrutura do Pocinho é administrada por uma Comissão de Gestão Local. Dela fazem parte representantes da Câmara Municipal de Foz Côa, do IPDJ, das federações de remo e da canoagem, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e do Centro de Saúde de Vila Nova de Foz Côa. É esta comissão que gere o “Centro de Alto Rendimento de Remo”, assim identificado no regulamento de utilização. Em 2023, teve uma taxa de utilização de 40% e este ano “tem sido o melhor de sempre”, congratulou-se Pedro Duarte, da Câmara Municipal de Foz Côa. Mas não por causa do remo. “Fruto do trabalho de promoção feito”, quem mais requereu o espaço foram “equipas masters e jovens universitários do Norte da Europa”, atletas não olímpicos. E de canoagem.
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