Mundial 2018

Bernardo Silva: “Falhar o Europeu foi duro, pensei que podia lá estar com eles. Passados dois meses ainda estavam todos contentes”

Bernardo Silva: “Falhar o Europeu foi duro, pensei que podia lá estar com eles. Passados dois meses ainda estavam todos contentes”
nuno botelho

A seleção terá no Mundial um extremo que pensa como um médio e que, após um ano com Pep Guardiola, no Manchester City, está melhor (e diferente). Bernardo Silva deverá ser titular hoje (19h, RTP1), contra a Espanha, no lado direito do ataque de Portugal, a partir dos mesmos sítios onde mais deu nas vistas no AS Monaco, em França, e em Inglaterra, esta época

A bola. É o que Bernardo Silva privilegia, sempre, durante um jogo de futebol. Justifica-o pelos muitos anos em que cresceu a jogar a médio, até virar profissional — e isso percebe-se quando o vemos jogar e o ouvimos falar. Aos 23 anos, e depois de falhar a glória do Europeu devido a uma lesão, vai ao Mundial após uma época de convivência com Pep Guardiola, que lhe mudou a maneira de pensar.

Estás num jogo, a meio do meio-campo adversário, e sabes que vais receber uma bola. Em que pensas?
Acho que a primeira coisa que a maioria dos jogadores pensa, na parte ofensiva, é tentar perceber se está marcado, quantos adversários tem e onde é que estão, para saber para que lado deve fazer a receção e como a fazer. Depois, tem de perceber se é o momento para atacar com intensidade, ser agressivo e ir para a baliza, ou se é o momento para manter a posse da bola e fazer um jogo mais passivo. Acho que é isso, porque, se a tua equipa estiver muito cansada, é melhor manteres a bola; se precisares de marcar um golo e vires que a equipa adversária está desorganizada e há vários jogadores da tua equipa em zonas de finalização, tentas obviamente atacar — ou arriscar um passe, ou um remate, ou uma finta, para criar desequilíbrios.

Tudo isto sai-te instintivamente?
Sim, porque já jogo futebol há imensos anos. Mas obviamente que estas coisas se trabalham e se melhoram. A objetividade e o olhar para trás, para ver se está lá algum adversário, se estás marcado ou sozinho, para saber se podes rodar, se tens de jogar no apoio, isto ganha-se com a idade. Mas, hoje em dia, já sai mais naturalmente.

Preferes que uma ação tua gere uma situação de vantagem para um companheiro ou fintar?
Acho que depende das situações. Tento ser objetivo e, portanto, desde que as situações criem perigo ou deem golo, é sempre bom para a equipa. É isso que procuro. Em certos momentos é melhor arriscares, fazeres uma finta e tentares tirar um ou dois jogadores da frente, em outras é melhor jogar de primeira, em outras é jogar de segunda. Tudo depende do jogo.

A tua forma de pensar está muito diferente do que era há um ano?
Sim, bastante. É claro que treinar com jogadores da qualidade dos do Manchester City, estar todos os dias com eles e aprender não só com o Guardiola mas também com todos os outros, muda a maneira de pensar. Sinto-me muito melhor jogador hoje do que era há um ano.

Melhor ou diferente?
Sinto-me diferente e melhor. Por exemplo, o sistema tático do Mónaco era muito diferente do sistema do City e da Seleção — mas até era mais parecido ao da Seleção, porque era 4-4-2 tanto no Mónaco como na Seleção, e hoje é 4-3-3 no City. Portanto, isso muda logo bastantes coisas. Neste momento, jogando num sistema diferente, sinto que tenho de ter uma capacidade de adaptação bastante melhor para estar bem cada vez que venho à Seleção.

Em que coisas melhoraste mais?
Em relação à compreensão do jogo, tentar decidir rápido, saber o posicionamento, a forma de defender a nível tático e a mentalidade para todo esse tipo de coisas. Acho que progredi e aprendi imenso com o Guardiola.

Que percentagem dessa aprendizagem foi causada pelo Guardiola?
Acho que foi 50% com ele e 50% com os meus companheiros, porque aprendes muito quando jogas ao lado de jogadores como o David Silva, o De Bruyne, o Agüero, o Gabriel Jesus, o Sané, o Sterling... podia dizer aqui a equipa toda. E quando treinas com jogadores desta qualidade, todos os dias aprendes. Vês o que eles fazem, o que eles fazem bem, como o fazem, e aprendes muito. Depois, com a compreensão tática que, principalmente, um treinador como o Guardiola tem, também vais aprendendo imenso.

Estavas intimidado quando chegaste ao City?
Bem, eu já tinha treinado com grandes jogadores, aqui na Seleção treino com o Cristiano, que é provavelmente dos melhores jogadores de sempre. Não digo intimidado, mas obviamente quando te mudas e não conheces ninguém — basicamente, só conhecia o Ederson e o Mendy — não estás tão à vontade nos primeiros dias. Depois, pela maneira como me receberam, a adaptação foi fácil.

Como é treinar com o Guardiola?
É intenso, é intenso. E é ótimo, porque é tudo com bola, e é um futebol ofensivo, para fazer golos e para atacar. Identifico-me com esse tipo de futebol e divirto-me imenso nos treinos.

É difícil acompanhar a velocidade com que ele pensa ou pede coisas?
É desafiante, porque ele passa-nos muita informação, e ao início é verdade que pode ser bastante, mas depois fica automático. Passados cinco ou seis meses de estarmos juntos e de ouvirmos sempre as mesmas coisas, de ele explicar tudo, independentemente de serem muitas ou poucas, começa a ser automático. Acabas por fazê-las.

Consegues explicar a forma como ele quer que a equipa jogue?
O futebol, como diz também o Fernando Santos, é muito simples: o objetivo é ganhar, e se marcarmos mais golos do que o adversário ganhamos. Seja qual for a equipa com quem se joga, a filosofia do Guardiola é que a nossa equipa tente controlar o jogo e passe o máximo de tempo possível com a bola. Quando tens a bola podes controlar o jogo e estás mais próximo de fazer golo. É isso que tentamos fazer, sempre de forma objetiva e a tentar criar problemas ao adversário. E quando perdemos a bola tentamos recuperá-la o mais rapidamente possível. A ideia de jogo dele anda muito à volta de ter bola, durante o máximo de tempo, no campo do adversário.

Jogando dessa forma, estás sempre mais perto de ganhar?
Há vários treinadores que pensam de maneira diferente, e não há uma maneira que esteja certa e outra errada. Identifico-me bastante com esta ideia de jogo de ter bola, procurar jogar para a frente e tentar atacar. Tenho imenso prazer em jogar numa equipa como o City.

Notaste muito a diferença de nível de Inglaterra para França?
Não, porque o campeonato francês é muito físico e, se calhar, ainda é mais agressivo do que o inglês. O que achei que faz a diferença é que tanto em Portugal como em França e em Espanha os árbitros apitam muito mais. Há mais paragens, e o jogo, automaticamente, perde um bocado de intensidade. Em Inglaterra é sempre a andar, o jogo não para, porque os árbitros não apitam. A nível físico, o futebol em França é muito agressivo, em Portugal e em Espanha não tanto, e para Inglaterra não senti muita diferença. Notei é que a intensidade é maior, porque as equipas têm um poder financeiro muito grande e conseguem ter pelo menos quatro ou cinco jogadores de nível muito alto. E os árbitros, não apitando, tornam o jogo mais corrido e atrativo para os adeptos.

Acaba por ser uma coisa cultural?
Claramente. E os próprios árbitros, às vezes, exageram. Mas, se medirmos na balança, acho que é bom o futebol ser mais rápido e não haver tantas paragens. Por exemplo — e isto não é para dizer mal —, por vezes vejo um jogo do campeonato português ou do campeonato francês com tantas paragens que depois o jogo perde interesse para os próprios adeptos.

Isso não te exige muito mais da capacidade de concentração?
Sim, e tens de estar mais bem preparado fisicamente. Tens de te adaptar à velocidade do jogo. E o tempo também ajuda. Agora, por exemplo, estamos a treinar com calor [estágio da Seleção Nacional], e é muito mais difícil do que em Inglaterra, onde está sempre a chover e parece que está sempre fresco para correr, nunca te cansas. Isso também ajuda.

E agora ouves o Guardiola a dizer que não sairás do City enquanto ele lá estiver...
Claro que é ótimo ouvir essas palavras do teu treinador, dão-te confiança e é sinal de que ele gosta de trabalhar contigo, de que tens feito um bom trabalho. Ouvir isso da boca dele é fantástico e dá-me motivação para na próxima época fazer ainda melhor.

Quando vais à Seleção pregam-te as mesmas partidas que sofres no balneário do City?
[ri-se um pouco] É diferente. No City sou o único português e dou-me muito com os brasileiros, são eles que brincam bastante comigo. Na Seleção já conheço a maior parte deles desde pequeninos ou jogo contra eles desde que tenho 10 anos. É uma relação diferente, mas também é um ótimo balneário e divirto-me imenso.

Nunca te apanham mal disposto numa dessas brincadeiras?
Já me apanharam, já.

E reages?
Reajo, toda a gente fica chateada de vez em quando! Também já lhes fiz algumas coisas e ficam chateados, mas isso faz parte das brincadeiras e temos que aceitá-las.

Estudaste num colégio, e o futebol é um mundo onde não costuma haver muitos ‘betos’. Tanta brincadeira pode ter a ver com isso?
É raro, é verdade. Mas acho que tem mais a ver com o facto de eles verem que estou sempre bem-disposto e a gozar com tudo, porque é verdade. Sentem que lhes dou liberdade para poderem brincar comigo, e é isso que fazem. Nem todos os jogadores têm o mesmo feitio no balneário ou a mesma personalidade. Dou-lhes abertura para esse tipo de coisas, e como eu também lhes faço tenho de aceitar que me façam.

Foste convocado para este Mundial, mas uma lesão tirou-te do Europeu de 2016. Foi o maior desgosto que já tiveste no futebol?
Provavelmente. Ia ser a minha primeira grande competição com a Seleção, e falhar um Campeonato da Europa foi duro.

Soubeste que não terias hipótese assim que te lesionaste?
Não fazia a mínima ideia, tinha de fazer exames. Vim a Portugal, e os médicos disseram-me que teriam de falar com o selecionador e que depois logo veriam. A partir desse momento, percebi que alguma coisa não estava certa, não é?

Quando Portugal ganhou à França, veio-te o óbvio à cabeça?
Claro que sim. Já estava em pré-época com o Mónaco e claro que pensei que podia estar lá com eles. Mas, sendo o primeiro título que Portugal ganhou a nível internacional, deixou todos os portugueses muito, muito contentes, e eu fui um deles. Queria ter lá estado, mas, não podendo, apoiei-os durante o tempo todo.

Sabias que ias ser convocado?
Não, acho que o único que sabia era o Cristiano. Tirei uns dias de férias, entre o final do campeonato inglês e o início dos treinos da Seleção, e fui com os meus amigos para Marraquexe, em Marrocos. Estava na piscina quando vi os convocados.

Sentes que o Mundial pode ser um acerto de contas contigo próprio?
Não olho para isso assim. Olho, sim, como a primeira oportunidade para representar Portugal numa competição tão importante, em que vou dar o meu melhor para ajudar a Seleção.

Entre o pré e o pós-Europeu, sentiste outra moral na Seleção?
Havia um ambiente de festa, de motivação e de alegria. Mesmo passados uns dois meses, eles ainda estavam todos muito contentes. Claro que se sente a diferença.

Tu e muitos jogadores já disseram que Portugal não é um candidato mas que vai ao Mundial para ganhar. A postura é mesmo essa?
Acreditamos que podemos, sabendo que não somos favoritos, porque tanto historicamente como olhando para outras seleções temos noção que o Brasil, a Espanha, a França e a Alemanha partem como favoritos. Mas, no Europeu, Portugal também não era favorito e ganhou. Portanto, vamos dar o nosso melhor, sabendo que é muito difícil mas que vamos entrar em todos os jogos para ganhar.

Jogadores como o David Silva ou o Kevin De Bruyne já olham para Portugal de outra maneira?
Acho que sim, como todas as seleções. Olhas para a Seleção Nacional e vês o atual campeão europeu. Há 10, 15 ou 20 anos vias uma boa Seleção, sempre com bons jogadores, mas agora é diferente, porque está lá o carimbo que diz que somos os campeões europeus. Faz um bocado de diferença na cabeça dos adeptos e na dos adversários. Nós temos noção disso.

O Fernando Santos continua a ser o português com mais fé na Seleção?
Acho que sim. Desde a qualificação para o Europeu de 2016 que ele sempre nos disse que acreditava que íamos ganhar. O que é facto é que Portugal ganhou. Ele continua a acreditar e a dizer-nos que é possível. Portanto, quando tens um treinador que acredita desta maneira, isso contagia os jogadores e tudo fica mais próximo de acontecer.

Mas como é que isso se contagia?
É tanto na atitude, como na forma como fala nas reuniões, nos treinos e dentro de campo. Dá para perceber que acredita em nós da mesma maneira que acreditamos nele. Por isso, vamos com a confiança no máximo, respeitando sempre o adversário.

O selecionador já disse, algumas vezes, que gosta de te ter na equipa porque és um extremo que guarda bem a bola. É assim que te vês?
Fiz a minha formação toda como médio. Não sou um extremo puro, apesar desta época ter jogado quase sempre a extremo direito no Manchester City. Sou um médio-extremo, ando ali a variar entre as duas posições. Por essa razão tenho características de médio, também, e privilegio, várias vezes, a posse de bola. Acho que é por aí que o selecionador disse isso.

A seleção costuma jogar com um extremo mais puro de um lado e um médio, do outro. Não acontece muitas vezes, por exemplo, jogares tu e o Gelson Martins, ou tu e o Ricardo Quaresma.
Tudo depende dos adversários e da intenção do selecionador. Não estou na cabeça do Fernando Santos, mas está relacionado com o que ele precisar, no momento. Já houve jogos em que arriscou um bocado mais, consoante o adversário, outros em que tentou ganhar mais o meio campo. Tudo depende da estratégia.

E o Cristiano Ronaldo?
É um prazer poder tê-lo na nossa seleção. É um dos melhores jogadores da história do futebol e tê-lo bem, sendo ele o nosso capitão, dá-nos ainda mais confiança para irmos ao Mundial na máxima força.

A vitória no Europeu tirou-lhe um enorme peso de cima?
A única coisa que lhe faltava era ganhar qualquer coisa com Portugal, e ganhou. Já venceu quatro Ligas dos Campeões e vai a caminho da quinta [a entrevista realizou-se antes da final, que o Real Madrid venceu], já ganhou cinco Bolas de Ouro, também os campeonatos inglês e espanhol e as taças todas. Faltava-lhe esse título na seleção e retira-lhe esse peso, mas, quando se fala do Cristiano, ele não se cansa de ganhar e tenho a certeza que está ansioso para ganhar o Mundial. Só falta o Mundial.

Nota: Versão alargada da entrevista originalmente publicada na edição de 2 de junho de 2018 do Expresso.

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