Mundial 2018

Ángel Cappa: “As equipas que ganham sem merecer indignam-me. Isso indigna-me como qualquer outra injustiça”

Ángel Cappa: “As equipas que ganham sem merecer indignam-me. Isso indigna-me como qualquer outra injustiça”
ALEJANDRO PAGNI

Treinou na Argentina, Espanha, Peru, México e África do Sul e ajudou César Menotti (Espanha-82 e Barcelona) e Jorge Valdano (Real Madrid e Tenerife). Ángel Cappa, ex-treinador argentino de 71 anos, estudou Filosofia e tem andado numa guerra que mais parece eterna contra aqueles que só querem saber do resultado e que dividem este desporto entre vencedores e derrotados (hoje é dia de Argentina-Croácia, 19h, SportTV1)

Ángel Cappa (1946, Bahía Blanca) aprendeu cedo na vida que o futebol era muito mais do que um resultado. Os valores e a coragem para jogar vivem no terceiro andar da bússola futebolística deste ex-treinador argentino, que ajudou homens como César Menotti (Espanha-82 e Barcelona) e Jorge Valdano (Real Madrid e Tenerife).

Há dois anos publicou com a jornalista María Cappa (filha) o livro "Tambien nos roban el fútbol", acusando o negócio de abarbatar a essência do jogo e o orgulho que iluminava a alma daqueles de origens mais humildes. Alguns chamam-lhe "vendedor de fumo", outros pedem-lhe para explicar o que é a tal história que tanto apregoa do "jogar bem".

Em dia de Argentina-Croácia (19h, SportTV1), este homem romântico defende que o futebol argentino é um despropósito e diz que a Espanha, fiel ao seu estilo, é quem joga melhor.

Em 1994 escreveu numa coluna no “El País” (ver aqui): “Vivemos na cultura da imediatez e do utilitarismo. Tudo tem de ser agora e prático. Tudo tem o caráter transitório dos produtos de consumo. Vale o que ganha e enquanto ganha”. Mais de 20 anos depois, o cenário ficou melhor?
Não, ao contrário. Agudizou-se o problema da imediatez e da superficialidade na análise do futebol. Tratam de tirar o conteúdo ao futebol, de desprezar o jogo e analisar o que acontece à sua volta. Neste momento estão a quantificá-lo e a ‘coisificá-lo’, transformando-o em algo que se pode explicar com os números. As estatísticas, em muitas ocasiões, são estúpidas, como por exemplo a velocidade máxima de cada jogador e os quilómetros que corre durante um jogo. Isso que escrevi em 94 agravou-se com o tempo.

Porque diz que nos estão a roubar o futebol?
O futebol tem a sua origem nos bairros humildes e tinha um significado muito claro para as classes populares. Primeiro era entretenimento, depois o orgulho que significa criar algo com uma bola, a seguir o respeito próprio e alheio, que inspirava o jogador de futebol nas suas origens. Depois há um conjunto de significados como solidariedade, coragem para jogar, ajudar companheiros, enfim, muitos valores importantes que tinha o jogo. Ainda tem, mas o negócio roubou isso porque lhe impôs a sua lógica empresarial que há que ganhar a qualquer custo, que a única coisa que interessa é o resultado. Vão desprezando o jogo, que para as pessoas pobres significa identidade e sentido de pertença. Por oposição, ao negócio o que interessa é o resultado, porque o que lhe importa é vender. Por isso, ‘coisificam’ o futebol e transformam-no em algo puramente para compra e venda.

Porque chamam ‘vende humo’ (vendedores de fumo) a pessoas como o Ángel, Menotti e Bielsa?
Porque normalmente os discursos que vão contra o sistema são resistentes. Eles dizem que há que ganhar de qualquer maneira e não há nada com mais falta de conteúdo do que essa frase. Nada tem mais fumo do que dizer que há que ganhar a qualquer custo, porque ninguém explica o que isso quer dizer. Se alguém diz que o jogo importa tanto quanto o resultado, é vender fumo. Para eles, o mais importante é o resultado e não têm em conta o jogo, que é o que nos faz dignos. O resultado, como dizia Eduardo Galeano, não é o mais importante: não se joga para ganhar, joga-se para jogar. O triunfo é uma recompensa.

Enquanto uns lhe chamam isso, canais de televisão e rádios convidam-no para explicar o que é jogar bem. O que é jogar bem?
Perguntam isso porque é um sintoma da decadência que vivemos no futebol e na vida. Também perguntam o que é ser uma boa pessoa… Não devia ser preciso perguntar tal coisa. Há alguns anos toda a gente sabia o que era ser uma boa pessoa e o que era jogar bem. Agora há que perguntá-lo e recorrer a Aristóteles, Platão, Descartes e Kant para dizer o que é jogar bem. Temos exemplos, digo sempre que jogar bem é o Manchester City ou o Barcelona de Guardiola. Isso é jogar bem. Vejam um vídeo dessas equipas e terminam todas as especulações.

Há sempre a sensação de que quem quer jogar bem não gosta tanto de ganhar…
Ahhh, bem… eles identificam-se com jogar não jogando com o resultado. A realidade mostra o contrário: normalmente ganham as equipas que jogam bem. Também se ganha de outras maneiras, porque é um jogo e há que escolher. Da mesma maneira que se decide como viver, decide-se como jogar para ganhar. Eles pensam que se alguém diz que há que jogar bem, então, não ganha; ganha o que transforma o jogo num trabalho. Essa gente não fala de jogar, fala de trabalhar. Para ganhar há que sofrer, dizem eles. A cultura da penúria também está associada à resignação do trabalhador. Dizem ao trabalhador que tem de sofrer e trabalhar porque assim é a vida. Isso dizem os ricos, que se aproveitam do trabalho das pessoas, então dizem que para ganhar há que sofrer. Eu acho que o futebol não é para sofrer, é para desfrutar. E, claro, para ganhar, mas isso é uma obviedade. É como alguém dizer que o mais importante é respirar. Claro… é óbvio, não?

ALEJANDRO PAGNI

Há pouco tempo disse assim num canal de televisão: “As pessoas pensam que desfrutar é rir-se de tudo como um idiota… isso não é desfrutar, isso é ser idiota”. O prazer está em perigo de extinção?
(risos) Quando alguém diz que o futebol é para desfrutar, as pessoas pensam que desfrutar é rir-se de qualquer coisa e sempre. Não é isso. Desfrutar é estar imerso no que cada um faz, como um ator ou um escritor. Desfrutam permanentemente mas também sofrem, com a página em branco ou na altura da estreia. Digamos que desfrutar é participar com gosto no que se faz. Jogar futebol tem momentos bons e maus, como viver. Se alguém diz “gosto de viver” pensam que viver é rir e estar sempre tudo bem, mas não. Viver significa também passar por momentos maus. Isto é óbvio...

Estudou Filosofia. Isso ajudou-o enquanto treinador?
Não. A Filosofia ajuda-me a pensar. Não tem nada que ver com o futebol. O que aprendi no futebol foi nos campos do meu bairro, com as pessoas, com os grandes jogadores e equipas, com os conceitos que os meus treinadores me deram no início. No meu bairro estava proibido de atirar a bola alta e forte, tinha que a dar a um companheiro. Foi isso que me fez pensar e desfrutar do jogo. Quando eu comecei jogávamos ao ‘baby football’, futebol de salão. Uma vez ganhámos 17-4 e o treinador disse que jogámos muito mal, que não se podia jogar futebol assim, que ganhámos porque o rival era pior que nós, que tínhamos de jogar melhor. Essa foi a primeira lição que recebi. Não me fez falta estudar Filosofia para entender que havia algo mais do que o resultado.

Porque diz que a inteligência está sempre sob suspeita?
Ao poder não lhe interessa que as pessoas pensem. Educam-nas para serem dóceis e obedecer, não para pensar. No futebol também é assim: se alguém pensa e questiona essa filosofia do poder, começa a ser suspeito.

Quando era treinador doía mais perder contra uma equipa que era intelectualmente superior e valente no campo ou contra alguém que renunciava a jogar?
Como treinador ou jogador doía-me perder sempre... mas doía muito mais perder contra as equipas que entravam em campo para não jogar. Não é doer, deixava-me irritado, pela injustiça. Eu fui criado num ambiente em que tinha tanto valor o resultado como o merecimento. Valorizava-se tanto o merecer ganhar como ganhar. Por isso, as equipas que ganham sem merecer indignam-me. Isso indigna-me como qualquer outra injustiça.

Ajudou Menotti no Espanha-82?
Sim, ia ver os rivais da Argentina. Nada mais. Era uma ajuda muito tangencial.

Ficou encantado com o Brasil de Telê Santana, não foi?
Sim, tocou-me ir ver o Brasil e desfrutei enormemente. Foi uma maravilha do Mundial de 82. As pessoas desfrutavam muito... E, lá está, indignei-me quando lhe ganhou a Itália imerecidamente, porque o Brasil mereceu ganhar esse jogo confortavelmente. Bem, mas isto é um jogo e às vezes também se ganhar sem merecer. Como na vida: há indivíduos que ocupam lugares que não merecem.

Peter Robinson - EMPICS

Quando Menotti se mudou depois para o Barcelona também o ajudou?
Fui ver os rivais também. Nesse momento eu estava a começar no futebol e a fazer o curso de treinador.

Menotti chegou a dizer que eram assobiados quando passavam para trás. Acha que esse Barça abriu a janela ao ‘Dream Team’ de Cruyff?
Sim, claro que sim. Esse Barça deu o ponto de partida para o que seria o Barcelona. Começou a ter a bola e dava muito mais valor a segurar a bola atrás do que a dividi-la mais à frente. Isso não era compreendido. Depois, as pessoas acabaram por aplaudir, porque finalmente compreenderam que se tratava de jogar bem futebol.

De quem gostou mais enquanto clube, pela identidade e cultura, Real Madrid (com Valdano) ou Barcelona?
Estou satisfeito com todos os clubes por onde passei. Sempre desfrutei, inclusivamente quando correu mal. Sempre agradeci ter trabalho e fazer o que mais gostava. Entendi que às vezes corria bem e que outras nem por isso. Não distingo um de outro, mas se tiver de dizer com que equipa mais desfrutei, digo Huracán de 2009. Essa equipa emocionava-me até ao ponto de ter de aguentar para não chorar de emoção.

As pessoas continuam a falar muito desse Huracán...
Sim, continuam a desfrutar. É mais um exemplo, nem é o primeiro nem será o último, que não vale só ganhar. As pessoas também desfrutam e agradecem quando uma equipa representa os seus sentimentos.

Como no Tenerife…
Também, também. O Tenerife de Redondo, Latorre, Castillo, Felipe, Chano… Desfrutámos muito dessa equipa e os outros também.

Chano jogou cá em Lisboa, no Benfica...
Sim, sim. Muito bom jogador. Era um volante pela direita, muito fino a jogar, muito elegante.

Com quem teve as melhores conversas?
Com as pessoas do meu bairro, onde aprendi coisas importantes. Aprendi o que era o futebol e a vida. As conversas mais importantes foram essas, são as que recordo com mais carinho.

E no futebol?
Com Menotti, sem dúvida alguma. Menotti foi o meu professor e continua a ser indiretamente, sem a pretensão de me ensinar coisas. Quando alguém fala com Menotti aprende sempre de futebol.

Como explicaria às pessoas quem é César Menotti?
Para mim, no futebol atual, diria que há dois treinadores que são fundamentais, que trouxeram coisas importantes para melhorar o futebol: Rinus Michels, a partir da tática, e Menotti, pelos conceitos. Os conceitos permitem-te entender. Rinus Michels fez com que as equipas fossem curtas, reduzindo os espaços e os tempos. Obrigou a pensar de outra maneira. Menotti ajudou-nos a entender o jogo, a meter-nos no interior do jogo e a compreendê-lo melhor.

PA Images Archive

Agora a seleção. Considera que a Associação de Futebol da Argentina (AFA) tem um plano?
Não, não! A AFA não tem nenhum plano, não tem há anos e por isso o futebol argentino é um despropósito. A única coisa que a AFA está à espera é que a Argentina faça um bom papel para varrer o pó para debaixo do tapete. Não tem nenhum plano, nenhum! O futebol argentino está organizado para vender jogadores. Nada mais.

Outro dia alguém dizia que Messi teve um selecionador a cada 15 jogos…
Claro, o Messi e os outros. É uma loucura, é um despropósito permanente, o futebol argentino. Ainda há pouco tempo queriam ir jogar a Jerusalém, com o conflito que há sem ter em conta a atitude de massacre de Israel contra o povo palestiniano. Sem ter em conta a ofensa que fizeram Israel e Donald Trump aos palestinianos, ao arrebatar-lhes a capital, olhando apenas ao dinheiro que iam cobrar. Por isso, os jogadores argentinos, com muitíssima dignidade, e creio que o treinador também recusaram ir lá. Aos dirigentes só lhes interessa o dinheiro.

Como acha que vai correr o Mundial à Argentina?
Há sempre que ter em conta o futebol argentino. São jogadores muito competitivos, têm muito orgulho e muita experiência. E, para além disso, há Messi. Por isso, digamos que está sempre entre os candidatos, embora os antecedentes de maneira nenhuma lhe podem dar essa candidatura. Como no último Mundial, mas, no entanto, jogaram a final e não a ganharam por acaso.

Se pudesse, quem oferecia a Sampaoli: Passarella, Redondo ou Batistuta?
Redondo. Ele escolhia o bom jogo. Era um médio centro que faria a seleção jogar muito melhor. Era um grande jogador. A Argentina, neste momento, precisava mais de Redondo do que de qualquer outro.

Christian Liewig - Corbis

Conhece a seleção portuguesa?
Sim. Portugal tem muitos bons jogadores e Cristiano Ronaldo. Espero que tenham uma boa equipa também. Historicamente, Portugal sempre teve muitos bons jogadores mas isso nunca resultava numa boa equipa. Creio que agora tem outra vez a oportunidade de mostrar que para além de bons jogadores, podem fazer uma boa equipa de futebol.

Acha que jogam bem?
No último Europeu jogaram bem e têm a possibilidade de jogar melhor do que estão a jogar. Insisto, Portugal sempre teve bons jogadores mas faltava equipa.

Que seleções vai seguir neste Campeonato do Mundo?
A Espanha, que, para mim, é a que joga melhor neste momento. É como dizem todos: Espanha, Brasil, Alemanha, Bélgica, França e depois os outros. Mas quem joga melhor é a Espanha, que há 12 anos tem um estilo de jogo e respeita-o.

* Ángel Cappa foi entrevistado antes do arranque do Campeonato do Mundo

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: htsilva@expresso.impresa.pt