Mundial 2018

O suor, a batalha e as lágrimas dos uruguaios foram até onde a sorte lhes acabou

O suor, a batalha e as lágrimas dos uruguaios foram até onde a sorte lhes acabou
MB Media

Dos vencidos reza o título desta crónica, não que a sorte seja o que levou o Uruguai até tão longe. Mas, sem Edinson Cavani, a equipa perdeu um dos avançados complexamente obsessivos em ganhar bolas na frente que tornam o seu jogo tão eficaz. A França, sobretudo na segunda parte, fugiu à luta e à garra uruguaias, assentou o futebol de toques curtos e ganhou (2-0) a passagem às meias-finais do Mundial com um jogo que consegue ser cada vez mais perigoso

A sorte e o azar existem como opostos ao mesmo tempo que são duais, como o taoísmo vê o yin e o yang: coisas, aparentemente, contrárias uma à outra, acabam por se complementar, interligadas por estranhos, inesperados e improváveis caminhos da vida. Eventualidades que os uruguaios tão bem conhecem.

Pequenos e pouco populosos, eles têm uma terra, Salto, onde não se contam mais do que cem mil dos três milhões de almas do país. Muitas décadas, tratados de paz e negociações territoriais atrás, e há muitos líderes a discutirem linhas em mapas, determinou-se que esta cidade ficaria no Uruguai e com o subúrbios a fazerem cócegas à Argentina, tão próximos da fronteira. Nesta remota Salto, afetada por mil e um fatores aleatórios, nasceram, no mesmo tempo de vida, dois dos melhores avançados de uma geração chutadora de bolas que nos está a passar diante dos olhos.

O dentudo Luis Suárez nasce e, vinte dias volvidos, é nado, quase nas mesmas coordenadas, o Edinson Cavani que preocupou os pais pela falta de pilosidade na cabeça, à nascença, e cresceu a deixar o cabelo tocar-lhe nos ombros enquanto marca uma centenas de golos, à semelhança do conterrâneo. Ambos contagiam a seleção com as suas doses industriais de bem-suceder e o país marca, ganha, longe vai nas competições e joga, realisticamente, acima das suas possibilidades.

A sorte alinha-os com tantos fatores fortunados em série que, quando um deles falta, as proporções de azar acontecem em igual medida. Esse fator é Cavani e a mazela que o tira do jogo com a França, por conseguinte, é trágica, fatal e dantesca, ainda nem os uruguaios entraram no jogo.

Os talentosos e jeitosos futebolistas não caem das árvores, nem existem no mesmo rácio que bafeja o Brasil ou a Argentina, ricos vizinhos que, por cada prodígio nascido no Uruguai, encontram uns 20 ou 30 a brincarem com uma bola na rua, à espera de serem aproveitados. Os uruguaios estimam, cuidam e fortalecem as qualidades não necessariamente inatas que há em tipos como Godín, Cáceres, Giménez, Torreira ou Nandez, pequenos vulcões de raça e agressividade que levam o futebol para um campo onde são capazes de igualar seleções como a francesa: a batalha, ou a famosa garra charrúa.

Está Griezmann a distribuir pequenos passes e combinações ao primeiro toque, à frente da área, Mbappé a desdobrar-se, extraordinariamente, entre corridas velozes com a bola e ziguezagues em pequenos pedaços de relva, e estão Giroud e Pogba a servirem de referências de costas e de frente para a baliza.

E lá estão os uruguaios, a correrem possessos atrás deles, fechados em torno da área e a tocarem, pouco amigavelmente, em qualquer francês que ouse tocar na bola, por mais breve que seja.

Pressionam-lhes os laterais que são centrais adaptados, encravam a execução de ideias da França e permitem apenas que uma bola caia sobre um sozinho Mbappé, na área. Não se apercebe do isolamento e remata-a em balão, com a cabeça, em vez de a deixar cair nos pés. Os franceses rebolam e esperneiam com a força bruta que sobre eles carrega, em todos os duelos, forma de agarrar o futebol pelos dentes (e reputação) da qual os uruguaios se tentam afastar desde 1986 - quando José Batista viu um cartão vermelho aos 54 segundos de jogo, contra a Escócia -, mas não conseguem descolar.

A muita pancada, combinada com o medíocre acerto no passe nas equipas, desgovernadas pelas faltas, entradas duras e pressão, valorizaria sempre as bolas que ficariam quietas sobre a relva, para serem batidas. O livre que Griezmann cruza para a área seria um ponto forte dos uruguaios, majestosos pelos ares, mas o sónico ataque à cabeçada de Raphaël Varane criou o 1-0 no meio ambiente dominado pelos sul-americanos.

O plano de solidificar a equipa sem a bola e cerrar todos os espaços em campo com a vontade de dez jogadores, que corriam como se 10 mil vidas dependessem disso, tornou-se, a partir daí, demasiado curto.

A crónica preferência uruguaia por evitar os rodeios com a bola virou-se contra eles. As vidas longas e diretas de chegar à frente não surtiram uma real e perigosa hipótese de alguém marcar um golo. Tolisso, Pogba, Kanté vestiram os fatos macaco, trabalharam nas segundas bolas, vindas de Varane e Umtiti, mais do que jogaram.

Antes, durante e depois, o estilo bombeador condenava-se ao insucesso - por mais que corresse, lutasse e fosse chato, Suárez era o único avançado nascido em Salto e complexamente obsessivo em perseguir bolas, lá na frente. Sem Cavani, o seu impacto minimizou-se, porque Christian Stuani e Mário Gómez também nunca serão Cavani.

A existência do Uruguai na área francesa foi um misto de quase remates e desvios a bolas que vieram de cantos, ou de livres. Tiveram uma hipótese, apenas uma, em que Cáceres viu Hugo Lloris esticar-se e pairar sobre a relva, para uma das paradas do Mundial que, contudo, deixou a bola à sua frente. Godín fez da recarga à boca da baliza o que faz da maioria das bolas a que sucessivamente é o primeiro a chegar, na área oposta: bateu-a para fora do campo.

Jogava-se há uma hora quando o melhor dos franceses parou à entrada da área e deu uma pancada seca à bola. O remate desviou-se com efeitos traiçoeiros, apenas pequenas oscilações numa trajetória reta, suficientes para o guarda-redes Muslera se confundir num frango que aniquilou os uruguaios. O frio e impávido Griezmann não festejou, por respeito ao Uruguai que diz ter como segundo país, mesmo que ainda esteja para vir o dia em dará o primeiro passo na terra deles.

Carlos Cuin

Claro ficava que o plano uruguaio seria insuficiente, tornando-se desesperante com o avançar do tempo. A intensidade desgarrou-se, os jogadores afastaram-se, até os encostos rijos ganharam parcimónia. Cada um lutava mais isoladamente do que em conjunto, entre as mostras de amadurecimento de um Pogba, por fim, a ter a bola e a efetivar o que tem de bom, e os laivos neymarescos de Mbappé. A cinco minutos do fim, os olhos de Giménez já choravam enquanto ele corria.

O Uruguai jogou como quase sempre joga há 12 anos, reflexo de Óscar Tabárez, que se sustém por uma canadiana, da alma do selecionador que o fará perdurar muito além do tempo e da ação que uma doença degenerativa lhe está a roubar. A mesma sorte, contudo, que lhe deu tão fantásticos, lutadores e goladores avançados, é na mesma medida o azar que o Uruguai tem em tanto depender deles: Suárez não tem metade do valor em campo sem Cavani, e o mesmo aconteceria ao contrário.

Juntos, talvez, não dariam valor suficiente aos uruguaios para superarem a França apenas pelo estilo e a garra que lhe dão. A cada jogo jogado que os franceses se associam mais à aptidão de Griezmann em fazer jogar quem o rodeia, que têm mais lógica com a bola pela entrada na idade adulta de Pogba, que respira graças ao incansável Kanté. E, claro, que mais desequilibradores de adversários estão a ficar via a explosão de fintas e dribles e raides de Kylian Mbappé.

Acabou a sorte dos uruguaios, prossegue a ascensão literal dos franceses.

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