Os ingleses não sabiam o quão bons podiam ser, até Gareth Southgate aparecer
Clive Rose
Os mesmos ingleses que desdenharam a figura do antigo defesa central que falhou aquele penálti, em 1996, são os que já veneram o treinador que superou o trauma, se adorna de grava e colete e fala, ponderada e honestamente, em público. Gareth Southgate é o selecionador que deu à Inglaterra uma forma de jogar concreta e uma maneira de fazer as coisas adequada aos jogadores que tem para, finalmente, se justificar a patológica histeria, expetativa e auto bajulação coletiva de um país que, 28 anos depois, está nas meias-finais do Mundial (Inglaterra-Croácia, 19h, RTP1) e, finalmente, tem razões para acreditar que o futebol pode "voltar para casa"
As camisolas patologicamente largas, com as mangas assentes, pelo menos, nos cotovelos, e pintadas a cores ora berrantes e sem nexo, ou rendidas a padrões neutros e aborrecidos. Como o cinzento, que nunca esquentará vivalma, nem puxará para sensações felizardas. É a cor neutralizadora de sensações que a coincidência tornou apropriada ao momento que, precisamente, ainda é o mais cinzento da relação que um homem nutre com o futebol.
Um tão traumático, castrador e amaldiçoador evento que a mentalidade coletiva de um país sofreu mais, desde 1996, do que o indivíduo que sentiu a angústia a 11 metros de distância e, de facto, falhou no que milhões de vontades desejam e apenas um pé pode tentar concretizar.
Na meia-final de um Europeu lá estava Gareth Southgate, camisola enfiada nos calções, preso numa linguagem corporal por demais protocolar, visível a milhas que desconfortável estava por ser ele a bater o sexto penálti, cuja eventual falha vale mais do que falhar os cinco pontapés anteriores. Ainda para mais quando todos os ingleses e alemães que o precedem batem a bola aos ângulos, a rasar os postes, à rede superior e com pontarias consideradas indefensáveis.
Ele coloca a bola no sítio, dá muitos passos à retaguarda, corre e remata rasteiro, timidamente. E falha com a tentativa mais falível desse sortido de grandes penalidades.
Esse momento sugou a Gareth Southgate todas as hipóteses de o seu nome lembrar os ingleses do colecionador de 58 jogos pela seleção, do defesa central seguro, competente e leal, que foi capitão do Crystal Palace, Aston Villa, Middlesbrough e de Inglaterra, os três clubes e a nação pelos quais jogou.
Não. Tal e qual a personagem de banda desenhada cuja auréola é uma nuvem cinzenta, que sempre lhe paira sobre a cabeça, a chuviscar, Gareth Southgate ficou destinado a ser lembrado pelos ingleses como o tipo que falhou aquele penálti.
Soube “imediatamente” que esta bola “seria um problema gigante para o resto da vida”. Ele é inglês e ciente era do sentimento partilhado no país onde nasceu a pessoa que teve a ideia de dar pontapés num trapo cozido de forma arredondada.
A Inglaterra que, em 1996, conquistou o Mundial caseiro e, desde então, sucumbe à histeria e à desmesurada inflação de expetativas, que iludem e desiludem milhões de pessoas, segundo a cadência bienal a que acontecem os grandes torneios de seleções. “Não era tecnicamente bom o suficiente para executar aquele gesto em específico, sob aquela pressão. Não me vou desculpar a discutir: mas, ao menos, cheguei-me à frente, algo que esperaria de qualquer líder”, diria Gareth Southgate, mais de 15 anos volvidos, ao "The Guardian", já maturado e de pazes feitas com ele próprio.
Stu Forster
Mas seria errado pensar que os ingleses estavam em paz com ele e tudo o que a sua memória representava, quando Southgate foi o escolhido para suceder aos 67 dias de Sam Allardyce como selecionador, abruptamente terminados pela investigação do “Daily Telegraph”, que o escutou e filmou a compactuar com alegados interessados em tornear as normas da FIFA para transferir jogadores.
Tendo em conta o seu contexto muito próprio de auto bajulação e atribuição de favoritismo, a Inglaterra estava soterrada num pântano movediço: acabara de cair nos quartos-de-final do Europeu com a Islândia; o seu futebol era previsível e infrutífero; os seus jogadores aquém tecnicamente dos melhores europeus, já há um par de gerações; os seus treinadores antigos, antiquados e presos a um tempo distante.
A mentalidade dos ingleses, resumindo, estava desajustada a esse contexto.
E quem ficou com a responsabilidade de a ajustar foi um tipo de 46 anos, com duas épocas e uns meses de experiência a treinar um turbulento Middlesbrough, com uma despromoção da Premier League à mistura, seguidas de três anos a coordenar o programa de Desenvolvimento de Elite da federação, antes de pegar nos sub-21 e conquistar um torneio de Toulon.
Gareth Southgate anuiu, embora contrariado, ser o remendo interino, algo como uma experiência que durou quatro jogos, entre setembro e novembro, até ser oficialmente confirmado como selecionador inglês, em 2016. “Estou determinado em dar tudo o que tenho para dar ao país uma equipa da qual se orgulhem, que apreciem de ver jogar e evoluir”, traçou, nas primeiras palavras, que à primeira e superficial interpretação seriam sempre vistas como redundantes.
Nem dois anos acontecem e cá está a Inglaterra, a sua Inglaterra, nas meias-finais do Mundial, repetindo tal feito 28 anos volvidos.
E, mais do que o sítio até onde Gareth Southgate os levou, importa o percurso que fizeram: sobre esta seleção não cai bem dizer que joga bem, mas que tem uma forma clara, trabalhada e notória de jogar, que tira o máximo proveito de uma colheita de jogadores que não constará no top 5 de ninguém, quanto a plantéis ingleses selecionados para estarem em Europeus ou Mundiais.
O treinador teve o engenho de inventar um combinado de nomes em que consta Harry Maguire, Kieran Trippier, Jesse Lingard, Ashley Young ou Jordan Pickford e deles, enquanto jogadores, extrair o melhor para potenciar as melhores coisas em Harry Kane, Dele Ali, Raheem Sterling ou Jordan Henderson, os futebolistas que, à partida para este Mundial, seriam capazes de entusiasmar quem olhasse para os convocados de Inglaterra.
No dia em que os anunciou, um por um, feito o apuramento para a Rússia em que foram a seleção menos sofredora, com três golos (a par da Espanha), fê-los serem a segunda seleção com a média de idades mais jovem do torneio: cerca de 26 anos. “Não o vejo como um risco, os jogadores são livres de inibição. É um risco, sim, ter medo da forma como queremos jogar. É um risco não ser valente o suficiente para colocar jogadores só porque são bons, sem pensar no facto de serem jovens e, talvez por isso, ser melhor escolher um pior jogador, por ser mais experiente”, explicou, de forma prática, eloquente, ponderada e lúcida.
Gareth Southgate contentou-se com o que tinha, aceitou-o, ousou jogar com isso e não arranjou desculpas “para não apostar em miúdos”.
Aceitou que eles iriam “cometer erros” pela “forma como lhes [pede] para jogarem” - partindo de três centrais para criarem vantagens com a bola, dois laterais projetados bem dentro da metade do campo adversária, para fixarem marcadores, e um par de médios interiores a viverem dessa largura e dos espaços que se abram entre os defesas rivais, com desmarcações constantes.
Lingard e Sterling são os miúdos desequilibradores em corrida, Harry Kane o bombardeiro de seis golos, que até já recua metros para arrastar rivais e lançar companheiros na profundidade, e Harry Maguire é o central com corpo de avançado de râguebi e surpreendente bom passador de bola, para quem toda a gente sabe que se vão dirigir os livres e os cantos, mas ninguém arranjou forma de contrariar.
A Inglaterra é uma equipa bem maior do que a coleção de indivíduos, onde não moram craques badalados nas redes sociais, muito menos estrelas que são a estrela nos seus clubes (apenas Kane, talvez, será o jogador-bandeira do seu Tottenham), e aspira a tentar ser melhor que os adversários em vez de assumir, à priori e segundo um suposto direito histórico que lhe pertence, que é superior. Ou seja, é o contrário do que vinha a ser, no último par de décadas. "Há outras equipas no torneio que têm uma melhor coleção de individualidades, mas temos sido uma verdadeira equipa. Temos alguns excelentes jogadores, não há dúvida quanto a isso, mas a nossa força coletiva tem sido enorme", constatou a franqueza do selecionador.
O seu lado franco terá por certo ajudado. Mas a presença de Gareth Southgate tem significado que nele os ingleses possuem um líder carismático pela simpatia, frontalidade e apurado bom-senso, despido de quaisquer laivos de fugas à responsabilidade. Ele é humano antes de ser trabalhador num meio que pode ser tão superficial e ilusório pelas aparências, um gentleman à inglesa, muito para lá das camisas, gravatas e coletes com que se adorna.
Foi o selecionador que incentivou, e apoiou, Danny Rose a desvendar publicamente, em junho, ter lidado com uma depressão durante a época, provocada por uma lesão grave sofrida no joelho e um episódio familiar. O lateral esquerdo foi convocado, jogou neste Mundial e já frisou que a seleção o salvou. Foi também quem autorizou Fabian Delph, em pleno torneio, a viajar para assistir ao nascimento do terceiro filho, momento irrepetível que será sempre maior do que a presença repetível num torneio.
O jogador falhou a simbólica partida frente à Colômbia, nos oitavos-de-final, transbordante em simbolismo porque, 22 anos volvidos, os ingleses enfrentaram o trauma, de frente, e superaram-no. Venceram nos penáltis e libertaram-se de um estigma oriundo dos seis anteriores desempates a 11 metros da baliza em que tinham, sempre, perdido.
Façanha que terá algo a ver com as lições que Southgate retirou da sua malograda experiência com esse tipo de pontapés. Ele viveu em baixo e conseguiu prosperar em cima, naquele momento, e, entre o rejubilo dos festejos, preocupou-se em confortar, com um abraço, Mateus Uribe, o colombiano que falhou o penálti decisivo, antes de celebrar o feito exuberantemente.
Uma resposta que assumiu como “natural”, desconstruindo-a pelo facto de ter “um respeito enorme” à Colômbia, por “ter empurrado a Inglaterra até ao limite”, e por pensar que “é sempre mais fácil fazer esse tipo de gesto quando se ganha, do que quando se perde”. Um selecionador inglês a ser cordial, humano, respeitador e sábio na vitória, que não é mais do que saber ganhar - “É fácil ser magnânimo na vitória, não é?”, resumiu, entrevistado pelo “The Guardian”, com uma pergunta sobre a qual muita gente no futebol nem deverá pensar, quanto mais saber responder.
David Ramos - FIFA
Aos 47 anos, vive a liderar pelo exemplo, o senhor que está a encantar os ingleses com calma e ponderação, enquanto surgem vídeos de embriagados adeptos a desfazerem esplanadas, buzinarem sem critério pelas ruas e arremessarem cervejas pelos ares a cada vitória da seleção na Rússia.
Gareth Southgate é o mesmo tipo que, um dia, estava ele a entrar nos seus vinte, ripostou a um amigo da namorada, durante umas férias nas ilhas gregas, que preferia jogar uma vida e não ser convocado pela Inglaterra, do que investigar as raízes irlandesas de uma avó, como lhe sugeriu, para tentar chegar ao futebol de seleções.
A mesma pessoa que minutos após ser despedido do Middlesbrough, à saída do estádio, a sair de uma longa noite na qual só quereria refugiar-se em casa e aclarar as ideias, ainda acedeu ao adepto preso a uma cadeira de rodas, que sempre o aguardava no fim de todos os jogos. Tirou a gravata do clube que lhe apertava o pescoço e ofereceu-lha.
Classe, simpatia, genuinidade e um não falsificável bom coração guiam Gareth Southgate no futebolesco mundo onde é comum essas qualidades serem esquecidas.
Ele ser como é tem tanto mérito como ter posto os ingleses a jogarem como jogam, valentes, corajosos e a injetarem uma identidade clara nas coisas que tentam fazer. Por isso, as redes sociais, combinadas com a inspiração britânica e a altivez a que não conseguem renunciar por completo, popularizaram a frase "It´s coming home" - esperam que o futebol regresse à casa de quem o inventou e onde eles ganharam o seu único Mundial, frase e histeria coletivas que até levaram Justin Timberlake a transmitir o Inglaterra-Croácia na O2 Arena, em Londres, antes de dar uso à voz em concerto.
No dia em que toda esta esperança partilhada começou, no dia dos convocados, Gareth Southgate bem disse que os ingleses "não têm noção do quão bons podem ser". Tinha toda a razão.