Mundial 2018

Rakitic, o craque suíço que só um craque croata maior ofusca

Rakitic, o craque suíço que só um craque croata maior ofusca
Peter Kovalev

Ivan Rakitic é um croata que chegou a jogar contra a Croácia e, um dia, fez o pai chorar com uma escolha. É um médio constante na simplicidade brilhante com que joga futebol e com nervos de aço, por ter sido o primeiro jogador a bater o decisivo pontapé em dois desempates por penáltis seguidos, num Mundial. E por se comportar no campo como um relógio suíço (o que é mais do que um lugar-comum). Esta é a história do médio que não leva em cheio com a luz dos holofotes por culpa do único médio que está Rússia, lhe é superior e, por sinal, joga ao seu lado

Está fechado no quarto, tem um telemóvel nas mãos e ouve a inquietude do pai, vinda do outro lado da porta e dos seus passos, incessantes e nervosos. Há bastante tempo que as dúvidas já lhe fazem ricochete nos cantos da cabeça, mas decide-se, chama o número de Köbi Kuhn primeiro, por respeito, e só depois fala com Slaven Bilic. Tomou a decisão, comunicou-a, e ainda nota o caminhar nervoso do pai no corredor.

Abre a porta, encara-o, revela-lhe que decidiu continuar a jogar pela Suíça. “Ó, ok. Boa”. Deixa uns curtos segundos se intrometerem até soltar um riso e remediar a brincadeira. “Não, não, vou jogar pela Croácia”, corrige. O pai enche os olhos de lágrimas, sorri, desata a chorar com a decisão do filho cuja iminência, nas semanas anteriores, fizera chegar à porta de casa da família, em Mölhin, cidade no norte da Suíça, fotografias adulteradas, telefonemas anónimos com insultos e ameaças de morte.

Porque o próprio Ivan Rakitic o admite: “Sou um tipo suíço”.

Nasceu na Suíça, é pontual, organizado e “analisa as coisas de forma muito séria”, como um bom helvético. É fã incondicional de Roger Federer, o maior desportista e dominador de uma modalidade que a Suíça fez brotou. É um apreciador de curling como apenas povos muito peculiares o podem ser, perante um desporto tão específico. Torce por todas as seleções suíças.

Todos os anos, algures no verão, ele agenda um jogo de futebol em Mölhin, onde leva uns quantos amigos, que por acaso são futebolistas profissionais, internacionais por países e habituados a Liga dos Campeões. A partida acontece, sempre, no campo do NK Pajde, minúsculo clube que existe nas divisões regionais da Suíça, cujo presidente é o pai de Rakitic, o treinador-jogador é Dejan, o seu irmão, e o diretor desportivo é o tio.

A equipa é feita de amigos, familiares ou antigos vizinhos, as pessoas com quem Rakitic “jogava quando era miúdo”, gente à qual, de vez em quando, ainda se junta para treinar. Ou ainda juntava há quatro anos, mais ou menos a altura em que, aos poucos, começou a destapar-se e a falar, neste caso ao "The Guardian", sobre a vida do homem que há no futebolista rijo, dono de nervos de aço, o primeiro a bater o decisivo pontapé em dois desempates por penáltis no mesmo Mundial.

Um traço de personalidade em Ivan Rakitic que, por certo, é croata. Porque ele é croata.

Nasceu na Suíça, filho de croatas fugidos da Bósnia, antecipadores da tensão que cresceria para a guerra jugoslava que destroçaria os Balcãs. Lembra-se de crescer sempre a conversar em croata, em casa, de ouvir os pais a chorarem, mesmo tentando ser discretos, quando o telefone lhes trazia os relatos da Croácia, de gente que queriam bem.

E recorda-se do dia em que um pacote lá chegou a casa, que ele e o irmão, ainda crianças, abriram para encontrarem duas camisolas da seleção. Vestiam-nas para dormirem e tinham-nas sobre o corpo em 1998, quando assistiam com o pai, em silêncio, porque os nervos e o sofrimento dele não falavam, a todos os jogos que levaram a Croácia ao terceiro lugar do Campeonato do Mundo. “É por isso que, muitas vezes, sinto que estou a viver um sonho pelos dois”, chegou a admitir Rakitic.

O futebol para os croatas é mais do que vinte e duas almas, de uma vez, a existirem em função de uma bola. Antes de a Croácia declarar, unilateralmente, a sua independência e originar em 1991, a par de muitos outros rastilhos, uma conflito que duraria até 1995, uma seleção já existia.

A identidade e o patriotismo de um povo inundam os 100 metros de comprimento por 70 de largura e o dia em que Rakitic menos desfrutou do futebol foi quando teve de jogar contra a sua Croácia. “Nesse dia, dei conta de que algo não estava bem”, desabafou, ao “El País”, sobre a confluência de países, no escalão sub-17, onde se apercebeu que perseguia a bola do lado errado do campo.

E o fez pensar na decisão que tomaria mais tarde, fechado no quarto, separado por uma porta do tiquetaque da ansiedade do pai no outro lado da porta.

Ivan Rakitic foi um representante da Suíça nos relvados até aos sub-21, deixou de o ser em 2007, quando se rendeu ao que sentia. “Jogar pela Croácia significou seguir o meu coração, não pensei: ‘Nesta equipa vou jogar mais’. Esse processo de pensamento é para o futebol de clubes”, explicou quem é de uma nação que ainda não existia assim que ele passou a existir neste mundo, há 30 anos.

Floresceu como um prodigioso adolescente no Basileia, onde duas épocas precoces o levaram ao Schalke 04. Na Alemanha, o sedoso passador e rematador de bola cresceu, mesmo que muitas vezes deslocado do centro do campo, apesar de descolorar um já loiro cabelo, não obstante da seda do seu jogo ser tapada pela forma mecânica como rendia.

A forma constante parecia abafar o conteúdo genial nos olhos de quem o via.

Uma forma de o verem que o croata ainda parece suscitar. Hoje, que é um dos últimos paladinos resistentes do jogo posicional de toque, passe e dar vaivéns à bola que governou o Barcelona, depois de tudo o que Rakitic tem de bom ter explodido a meio do campo, em Sevilha, onde decidiu ficar, a meio do inverno, convencido pelo que viu no bar de um hotel onde estava.

Era janeiro, por alguma razão estava nervoso e convenceu o irmão a irem beber um copo na esperança de relaxar. Chegados ao bar, ele diz-lhe que um “grande clube europeu” está a telefonar, disposto a enviar um jato privado para o resgatar do Sevilha com o qual se comprometera, mas ainda nada assinara.

Rakitic pensou até ver uma mulher que trabalhava no bar, esse vislumbre o encantar e essa visão lhe fixar as ideias: “Já disse que sim ao presidente do Sevilha e as minhas palavras valem mais do que uma assinatura. E estás a ver aquela empregada de mesa? Vou casar com ela”. Nos três meses seguintes, enquanto procurava casa e pernoitava no mesmo hotel, Rakitic foi diária e religiosamente ao bar, sempre pedindo um café com leite e uma Fanta de laranja, no pobre espanhol que um poliglota de cinco línguas ainda só conseguia arranhar.

Outros quatro meses tiveram que passar até a noite chegar em que Raquel decidiu gozar uma folga no bar onde trabalhava. Alguém alertou Rakitic para o facto, a sua paixão já era tema de conversa, e ele, por fim, quebrou a insistência que o alvo do seu cortejo mantinha em se afastar de futebolistas, por desgostar da vida nómada que levam. “Convidei-a umas 20 ou 30 vezes, ela inventava sempre uma desculpa”, contou Rakitic, ao mesmo site que pede a desportistas para contarem as suas estórias, na primeira pessoa.

E a história do croata tem-no como um dos médios do planeta que melhor fomenta a sua relação com a bola, e que hoje está casado com Raquel, mãe das suas duas filhas.

Há certos pés que arredondam mais a bola que outros, que são partes de um corpo que se move pelos sítios certos do campo, nas alturas corretas, porque é movida por uma cabeça que doma o tempo e o espaço no futebol de tal forma que tudo nele - nesse pacote que faz um futebolista ser genial no campo e encantador de ver jogar - parece existir sem esforço.

Ivan Rakitic é um deles. A felicíssima coincidência para ele, e a generalidade dos croatas, é que outro é Luka Modric.

Agora que são trintões, jogadores experimentados pela pressão, ganhadores de Ligas dos Campeões, rodeados durante o ano civil por talentosas companhias em Barcelona e Madrid, se juntarem para nos enganarem, bem enganados. Eles aprimoraram um engodo, de que o futebol é uma coleção de excelentes decisões, raríssimos erros e uma questão de fazer a bola fugir de espaços tapados para os destapar em outros pedaços de relva, como se isso apenas dependesse do bom senso.

Nos seis jogos até à final que, no fundo, são sete, pelas três meias horas a mais que os croatas correrem em cada uma das eliminatórias depois da fase de grupos, Modric e Rakitic forjaram brilhantemente essa falsa noção. Simplificaram os passes, tabelaram, filtraram o jogo da Croácia, agressivos foram a encravar o adversário e são a prova mais evidente de que o futebol pertence a quem pensa antes de tudo, não a quem corre primeiro.

Neste elixir de fazer as coisas, o melhor alquimista é Luka Modric, o capitão e mais talentoso croata, anormalmente trabalhoso e esforçado para quem possui tanta técnica inata no trato da bola. É dos heróis não cantados do futebol que se rendeu ao poder dos golos e das estatísticas, um jogador que inflaciona quem com ele joga, um poder reconhecido por Rakitic.

Por isso é que ele se chegou à frente nos oitavos-de-final, com a Dinamarca, batendo o último penálti que fez os croatas sobreviverem, depois de unir a equipa numa roda e de a encorajar a “safarem” Modric, que tantas vezes os salvara e ali falhara um penálti, no prolongamento. “Merece que o sigamos e que fiquemos com ele”, diria, findo esse embate, o jogador que na véspera da meia-final esteve horas na cama, com febre aquecida até aos 39 graus.

Mas Rakitic foi o único croata, que não um defesa, a jogar todos os 120 minutos de cada encontro feito pela Croácia da fase de grupos até à final do Mundial. É um extraordinário futebolista, cuja existência ainda deveria ser mais louvada, por tão raro ser vermos um jogador assim numa seleção que tem, praticamente na mesma posição, alguém um pouco mais genial, influente e preponderante do que ele.

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