Há formulações que se magicam porque é da natureza humana buscar explicações para o que não entendemos. O desconhecido, no fundo, mesmo que isso seja inexplicável. Aliás, quanto mais fugidio à nossa compreensão, melhor. É desta nossa fobia ao que não conhecemos - a mesma alergia que, há séculos, levou homens sábios a temerem monstros vindos do fundo do mar nas partes do mapa nunca navegadas - que também vêm as teorias cósmicas.
Codificando este raciocínio em universos, neste em que estamos, o espaço, o tempo, a matéria, a energia e as leis da física têm André Iniesta, um pequeno, pacato e careca espanhol, entre os cinco ou seis humanos com quem uma bola de futebol mais quer fazer amor.
Isto é, nele há a estabilidade matemática de quase nunca errar um passe, uma receção, um controlo orientado, um passe para o espaço ou pé que seja. E há, também, o lado estético inato, de tudo parecer um quadro neoclássico a ser pintado em tempo real, à nossa frente. E descodificando tudo nas teorias de multiversos, conseguimos ter um vislumbre do que é a existência de Iniesta num universo paralelo a este nosso, em nos encontramos.
É um mundo em que ele, aos seus 34 anos, o mais importante dos espanhóis a alguma vez ter jogado futebol, receber um passe a meio campo, deixar a bola fugir em demasia ao bater no interior do pé esquerdo e ainda ficar com a cabeça genial presa na indecisão de se acercar, ou não, desse erro remediável. Porque, vendo esse desleixo em Iniesta, também Sergio Ramos o achou, naturalmente, remediável, e não atacou a bola que estava a meio caminho entre os dois.
Desta confluência esquisita de universos resultou a bola que a Espanha perdeu sob pressão e Boutaib apanhou, com 60 metros de campo para correr, até a fazer passar por entre as pernas de David De Gea.
Nesse momento, era mais do que expectável que o universo nos desse uma versão intensificada e abusiva do que acontece quando onze espanhóis entram num campo de futebol. Se fosse uma anedota, era a mais previsível de ser decifrada: uma equipa a tirar proveito do que é ter Busquets, Thiago Alcántara, Iniesta, David Silva e Isco a conviverem ao centro do relvado e a bola, alegremente, a ser passada entre os pés deles.
A circular à boleia de um ou dois toques, com jogadores irrequietos, a moverem-se tão constantemente, sem a bola, quantas as vezes em que ela trocava de dono, evitando conduções desnecessárias a não ser nas mentes brilhantes de Iniesta ou Isco, que neles atraem atenções e adversários para abrirem espaços.
A Espanha joga assim e assim marcou a Espanha um golo à Espanha, quando o primeiro desfez uma defesa e uma pressão com um toque orientado e o segundo parou o tempo na pequena área, para empatar ao segundo toque. E Marrocos a jogar com o que tinha, abundante na qualidade individual e no geral rapidez a executar coisas, e a compensar a permeável fortaleza forçada na defesa mostrando a sola, ou a força do físico, nos duelos.
Neste nosso universo, em que os espanhóis se vão impor a seja quem for que partilhe, apenas figurativamente, uma bola com eles, também existem seleções como a marroquina - a encantarem quem a vê pela espetacularidade e, sobretudo, pelo evidente gosto por ganhar, que neles sempre foi maior do que o medo de perder.
Só que, na sua forma de existir contra o intrincado e rendilhado mundo de toque espanhol, percetível para olho alheio, mas não reproduzível em outros nacionalidades, capaz de dar 762 viagens à bola em hora e meia, introduziram a luta. Melhor, o seu lado guerreiro foi despertado pela entrada a pés juntos de Gerard Piqué, sobre Boutaib, que nem repreensão amarelada mereceu.
O prato da balança que sustinha o peso da garra, dos encostos e dos lances a baloiçar na corda bamba da agressividade aceitável, pendeu para os marroquinos. Corriam pelo campo a morder as pernas de Isco, Busquets e Iniesta e demais artistas, empurrados pela ânsia de saírem vitoriosos do Mundial, e talvez pela inflamação histórica, gerada por sintomas territoriais e geopolíticos conhecidos por Ceuta.
Mas, dada como perdida a bola a meio do campo, eles aguentaram-se como puderam atrás e atacaram, furiosamente, os 50 ou 60 metros que Piqué e Ramos tinham por cobrir, sozinhos e nas suas costas, aquando das raras perdas de bola espanholas. Por isso ameaçaram na bola que Amrabat fez ascender até à barra, antes de El-Nesyri ousar virar contra Sergio Ramos a subjugação aérea que o central costuma impor aos restantes futebolistas saltadores deste planeta.
Apesar dos devaneios bonitos e tricotados de Isco, da bola cortada em cima da linha rematada por ele, de outra que rasou o poste vinda da cabeça de Piqué, ou de outras tentativas de Thiago e Asensio, os espanhóis eram erróneos na própria área e ineficazes perto da marroquina. O aparente excesso de calma e a notória falta de intensidade assim que superavam qualquer tipo de pressão a meio do campo deixaram os marroquinos em vantagem, com dez minutos por jogar.
Os espanhóis tanto forçaram em carregar com o cântaro perto da fonte que o calcanhar de Aspas lá acabou por largar água, já nos descontos. O enfado pelo perigo iminente do segundo lugar resgatou o empate que os deixou na liderança do grupo, ao mesmo tempo que o enfadonho Portugal era empatado por um penálti do Irão.
Em simultâneo, os marroquinos eram mais perigosos que eles, a tirarem proveito de muito bons jogadores como Belhand, Ziyach ou Amrabat e tirarem mais proveito dos recursos que tinham, com uma atitude que lhes deu apenas um ponto no Mundial, mas que os fará levar da Rússia muitos admiradores.
Os espanhóis, enquanto puderem, terão de querer levar mais coisas das áreas e deixar de confiar tanto que a bola, sozinha, os fará saírem vencedores de todas as vezes em que entrarem num campo de futebol. Porque este nosso universo também se vai habituando, e adaptando, ao vício, nem sempre intenso, com a bola - e não desabituando ou desaprendendo a lidar com essa forma de jogar.