Na lista dos países mais altos do mundo, e se duas fontes da internet não nos enganam, a Holanda está no topo do planeta (1,83m em média), Timor Leste e Laos na base (1,60 m) e Portugal no meio do caminho (1,73m) entre um pólo e outro; a França está bem acima (1,79m) de nós, mas este artigo não é bem sobre um francês, apesar da foto e do título e da entrada darem a entender que é.
Chamaram-lhe N'Golo em homenagem ao rei N'Golo Diarra, um escravo libertado que se fez rei de um reino que existiu em grande parte do território que hoje é o Mali. O pequeno N'Golo Kanté nasceu em Paris, filho de malianos, tem dupla nacionalidade e durante algum tempo ponderou jogar pelos africanos, pois a carreira internacional tardou em acontecer.
Aliás, a sua primeira chamada à seleção gaulesa A foi há dois anos – e ele tem 27 – e antes disso nunca fora convocado em nenhum dos outros escalões.
Kanté é um talento tardio que contradiz a norma.
Ao contrário da generalidade dos futebolistas do século XXI, este médio não é um produto-de-academia ou da epifania de um olheiro brilhante e visionário: até aos 19 anos, Kanté jogou no JS Suresnes, da oitava divisão francesa, e de cada vez que bateu à porta dos clubes profissionais à procura da sorte, fecharam-lha na cara.
PSG. Lorient. Rennes. Souchaux.
O argumento que ia ouvindo era sempre o mesmo: Kanté, és simplesmente pequeno demais para jogar futebol. Na verdade, ainda hoje parece singularmente baixo: com 1,68m, está a quatro centímetros da média maliana (1,72m) e muito mais longe ainda dos matulões com quem vai partilhando o meio-campo francês.
Pogba tem 1,91m. Matuidi, 1,80m. Tolisso, 1,80m. E N'Zonzi, uns espectaculares 1,96m. Ao pé deles, Kanté é uma amostra de gente – mas dentro dele vive um minúsculo Titã de pulmão inesgotável e com o dom da ubiquidade que só os grandes trincos têm.
“A terra é coberta 71% por água. O resto é coberto por Kanté”, escreveu o lendário e robusto Marcel Desailly no Twitter. É o mesmo que dizer que Kanté está em todo o lado e ao mesmo tempo.
Em todo o lado e ao mesmo tempo
A carreira de Kanté deu um pulo quando saiu do JS Suresnes para o Boulogne a meio de uma época em que o clube lutava para não descer de divisão, da segunda para a terceira. Acabou por cair e Kanté foi com ele, mas, ainda assim, ficou sete campeonatos acima da vida que levava no Suresnes. Depois, veio o Caen da segunda divisão e, então, inesperadamente, o Leicester, da Premier League, em 2015.
Ele que há duas épocas ia para o treino a pé ou de scooter ou até de boleia, ele que um dia comprou um envergonhado Renault Mégane em segunda-mão, chegava à liga mais competitiva do planeta.
Passou a andar de Mini, porque carros nunca foram com ele, nem tão pouco as palavras. Durante as três épocas que leva em Inglaterra, os colegas traçaram-lhe o perfil do rapaz tímido e quase patologicamente silencioso – deu apenas uma entrevista ao “Sunday Times” enquanto foi destruindo todas as boas intenções dos adversários, no Leicester e, depois, no Chelsea.
No total, leva 415 carrinhos e 323 intereções de bola e nunca foi expulso apesar de todos os duelos individuais que disputa ao longo de noventa minutos. O segredo está na antecipação, na leitura de jogo, obviamente na coragem também, e, sobretudo, numa resistência sobre-humana que levou Claudio Ranieiri a uma imagem feliz.
“Estou mesmo a ver que, a dada altura, ver-te-ei a intercetar a bola para depois a passares a ti mesmo no corredor, para a cruzares para o meio da área onde estarás para marcar golo”.
Por todas estas qualidades, foi eleito o melhor jogador da Premier League e a sua cotação subiu de 9 para 36 milhões (o que Chelsea pagou) e, diz-se, para 100 milhões (o que o Chelsea anda a pedir).
O futebol é dado à hipérbole, mas se houver alguém capaz de quebrar a linha do tempo e do espaço, é Kanté.