Ponto prévio: este jogo foi visto entre a secretária do jornal em dia de fecho e a sala da minha casa, a correr para a cozinha e a assistir duas crianças pequenas. Uma pessoa até fica doida, quem é que põe jogos destes às sete da tarde? Que alma pouco caridosa faz uma afronta dessas a uma mãe argentina? Uma mãe argentina que, diga-se, estava preparada para o pior. Para o pior dos desastres possíveis para alguém da minha nacionalidade, que é sair de um mundial com o rabo entre as pernas e a esconder-se atrás das figuras tristes do ídolo Maradona – já voltaremos a ele, como não?
Por enquanto, ouvia do comentador que a equipa em campo parecia "outra Argentina, melhor organizada taticamente". Uma Argentina organizada é mesmo outra, pensei, eu que saí de lá em 1989 nos calores da hiperinflação e hoje assisto de longe ao mesmo temível espetáculo. O comentador continuava a sua análise, dizendo que "talvez a Argentina lá chegue empurrando a bola com a barriga". Mas antes que o arroz queimasse ainda o ouvi berrar o golo, o primeiro do Messi no mundial, a redenção que vai fazer com que os argentinos, sempre prontos a passar do amor ao ódio numa ínfima fração de segundo, não o assassinem quando o tiverem por perto. Qual empurrar a bola com a barriga? Isto é mais tirar a barriga de misérias. E o comentador lá passava também da dúvida ao amor pespegando um sonoro "finalmente" e ensaiando aquele tipo específico de poesia futebolística que não sou capaz de repetir.
Sim, porque a Argentina não perde.
Acontece que nada é o que parece. E a Nigéria, graças a Mascherano e ao senhor árbitro, lá acertou na baliza. Pôs-se à frente da baliza, vejam lá, assim também eu. O comentador chamou a isso um penálti, pois muito bem, é um bom nome. A Nigéria teve um penálti, conseguiu o empate. Saltaram e rebolaram, até fizeram o pino, ao mesmo tempo que o Maradona (já voltaremos a ele) revirava os olhos e ameaçava ter um baque pela segunda vez – na primeira parte do jogo teve de ser assistido pelos paramédicos. Fui logo ao Facebook ver o que os meus amigos de 'lá' estavam a pensar, e claro, pensavam uma multiplicidade de coisas: uma minoria dizia pestes do árbitro turco, a maioria praguejava contra a sua própria e atabalhoada equipa (li muito a expressão 'boludos', que não vale a pena traduzir), que isto de ser argentino é como ser português, o estômago é que manda enquanto a razão descansa e somos os primeiros a autoflagelar-nos.
E assim, de sobressalto em sobressalto, com o jantar na garganta e as emoções ao rubro, o meu querido país fez o 2-1 com golo de Marcos Rojo aos 86 minutos de jogo e qualquer coisa – no futebol, todos os segundos contam! -, garantindo a presença nos oitavos de final do campeonato do mundo. E logo quando a poesia regressava mais solta do que nunca à boca do comentador, a câmara fazia o grande plano do Maradona que ficará para a história, que a história jamais esquecerá: os dois dedos do meio levantados com a maior classe, digam que não, quem senão ele faria aquele gesto com tamanha elegância? A seguir, ainda iríamos vê-lo aos trambolhões motivados por uma súbita queda de tensão ou por, simplesmente, estar com os copos, mas qual a importância disso? O homem não se mantinha em pé. Viva a Argentina!
E aqui chegamos ao centro do meu relato – desculpem vir para cá parafrasear Borges. É que Deus, como toda a gente sabe, é argentino. Deus é um argentino que pode assumir várias caras. A bancada mostrou-o claramente num cartaz com o Papa Francisco ladeado pelo Maradona e o Messi, sob a inscrição: "Dios y el Papa están com vos". Na Argentina, de certeza que muitas velas foram acesas na Iglesia Maradoniana, com filiais em 13 países e mais de meio milhão de fiéis, e dez mandamentos exclusivos entre os quais um que resume toda a sua vigência: "Difundir los milagros de Diego en todo el universo."
Quando os humanos começarem a colonizar outros planetas e tiverem de apresentar-se aos extraterrestres, lá estará Maradona para nos representar.
O meu avô, um húngaro de Budapeste naturalizado argentino aos 20 anos, e dono de um sentido de humor assim para o cáustico, sublinharia o inconveniente de receber os extraterrestres com os dedos do meio em riste. Ele não demorou a tornar-se um ferrenho 'hincha', adepto, como se diz por cá, de San Lorenzo e da seleção que eu conheci como sendo a de Maradona e de Tarantini - os heróis da minha infância. Se por um acaso a Argentina defrontasse a Hungria, ele escolhia o presente em detrimento do passado, ficava 100% argentino num ápice e não dava mais azo a conversas. Nessa altura da minha infância, em que Portugal para mim era apenas um ponto no mapa e não fazia parte dos itinerários de uma família (a minha) construída a força de exílios e viajantes, essa opção nem sequer suscitava uma estranheza, uma pergunta.
Se hoje o meu avô fosse vivo e lha fizesse, se me atrevesse a fazê-la (e se ele aceitasse responder), talvez poderia explicar-me que ser de um país é menos e mais do que pertencer-lhe. Duvido que, nesse momento, os seus olhos azul-turquesa não se toldassem ao reconhecer que, por vezes, o que se deixou é mais um buraco fundo do que uma recordação.
Talvez eu me pareça ao meu avô. Desculpem os que se sentirem atraiçoados, mas chegada há mais de duas décadas a este lado do oceano e ao hemisfério norte, talvez a minha camisola já seja em 70% a portuguesa. A vida leva-nos por caminhos estranhos, e só espero que não me pregue a partida de ter de ver a Argentina a defrontar Portugal. Será um momento digno para os tais dois dedos - não faço o gesto, que não tenho, nunca tive, a mesma graça de Deus.