Nigéria

Força, santo Moisés

Força, santo Moisés
Dan Mullan - FIFA

Victor Moses estava na rua, descalço, a jogar futebol com os amigos entre pedras e bolas improvisadas, quando lhe disseram que os pais tinham sido assassinados, em casa. Tinha 11 anos. Esta é a história trágica e ascendente de uma das super águias da Nigéria que reencontram a Argentina (19h, RTP1) no Mundial

Mais um dia de pé descalço, as ruas de Kaduna, aglomerado de prédios, betão e pessoas, na Nigéria, a servir para o imaginário do bando de crianças, que não precisam de muito para lá disso. Na inocente cabeça de Victor, e dos amigos, está a emoção, a ingenuidade, o sonho e o não querer saber de tudo o resto, para umas quantas pedras e um objeto que consigam arredondar serem suficientes para se divertirem.

É mais um dia em que um menino de 11 anos age e se comporta como a criança que é. Está na rua, a jogar arruaceiramente à bola, o motim mais alegre que pode haver, quando alguém vai ter com Victor e lhe diz o que, num ápice, o faz deixar de ser um rapaz como os outros.

É o dia em que Austin, um pastor cristão, e a mulher, Josephine, são assassinados quando estão em casa. O casal está entre as mais de 200 mortes registadas em Kaduna, vindas da revolta que gera os piores e mais tristes motins: a maioria muçulmana insurge-se contra a minoria cristã do país, um conflito religioso agravado, em parte, pelo imenso descontentamento gerado por um concurso da Miss Mundo, visto como impuro por todas as fações e, portanto, realocado para Londres quando os estragos já estavam feitos.

Nesse dia, Victor Moses perde os pais enquanto está a jogar à bola com os amigos, na rua.

Na atroz e vil ordem desnatural das coisas, ele seria o próximo alvo por ser filho de quem é. Temendo esse desenrolar, alguns familiares apressaram-se a juntar dinheiro suficiente para o trágico rapaz ficar a salvo - e desamparado. Victor foi enviado para Londres. No tempo de uma semana, um miúdo do futebol descalço na rua, entre amigos, passou a ser um órfão numa das cidades mais populosas da Europa, onde desconhecer o idioma era o menos.

Victor ficou com uma família de acolhimento, identificado como um refugiado. Perdeu o mundo e teve que refazê-lo. Começou a ir à escola pública, em Croydon, a soltar-se, a comunicar pela forma em que mais o podiam entender. O futebol agora era em pátios, nos recreios, ou na relva dos parques. “És um miúdo num país novo, tens de fazer amigos e isso foi muito difícil. Nem sabia falar inglês. Mas sobrevivi”, diria, mais tarde, à "BBC".

Foi a divertir-se como podia, num parque no sul de Londres, que alguém do amador e infantil Cosmos 90 FC reparou nele. Captaram-no e Victor ganhou um entretenimento aos domingos, a jogar contra miúdos da idade dele que, na realidade, apenas o viam jogar.

Moses era demasiado bom, forte, rápido e por demais melhor que todos os outros. As partidas de um paupérrimo clube começaram a ser vistas por centenas de pessoas, a palavras passou de que ali estava um miúdo nigeriano distinto, a milhas dos restantes em futebol quando, na vivência, já se distanciava em anos de luz.

Ele marcava golos a partir da linha do meio, repetia façanhas de evadir-se de crianças adversários como se fossem pinos presos à terra.

Um dia, isolado perante um guarda-redes, Moses vestiu-lhe uma cueca entre as pernas, chegou à linha de golo, virou-se para trás, picou-lhe a bola por cima da cabeça e voltou a fintá-lo, antes de marcar. O miúdo ficou em lágrimas, derrotado pela humilhação. A mãe, ultrajada, entrou em campo e começou a bater com a mala na cabeça de Victor. “Disse-lhe, após o jogo, que não interessava o quão bom és - tens que ser humilde”, recordou Tony Luizi, o seu primeiro treinador, ao contar ao “Goal” o quão superior Moses era, nos seus primórdios.

Até que outro dia chegou em que Victor, a aprender a ser humilde num desses jogos em parques e jardins e relvas viradas, à pressa, em campos de futebol, foi visto por alguém do Crystal Palace.

Victor experimentou um treino e ser aceite na academia não passou de uma mera formalidade. O clube quis tomar conta do menino com uma história que nem adulto suportaria e colocou-o em Whitgift, uma escola privada. Ele marcou dez golos na estreia pela pela equipa do colégio e outros cinco dele vieram na final da Taça de Inglaterra para escolas, organizada pela Federação Inglesa de Futebol.

Whitgift ganhou por 5-0.

Nesse dia, um jornal titulou o seguinte: “Holy Moses - Wonder Player Parts Red Sea”, juntando o seu nome bíblico à coincidência entre a história da separação das águas do Mar Vermelho e o facto de o derrotado adversário equipar de vermelho. Victor tinha 14 anos e a formar as bases do que seria um futebolista atleticamente soberbo e com técnica invulgar para alguém com tantas qualidades centradas no físico.

Estrear-se-ia pela primeira equipa do Crystal Palace aos 16 anos, imberbe e com bem menos tempo de futebol de formação que os adolescentes do seu escalão. O seu desgosto por estar no campo fê-lo mudar-se para o Wigan, onde muito jogou e impressionou para ser contratado pelo Chelsea, em 2012. Tinha 21 anos e chegava a um clube acabado de vencer a Liga dos Campeões, mas que dali a meses ficou feito em alguns cacos, com treinador despedido e sem títulos conquistados.

O prometedor Victor não encontrou a consistência e, nas três épocas seguintes, foi consistentemente emprestado, primeiro ao Stoke City, depois ao Liverpool e ao West Ham. Até ao dia em que Antonio Conte o conheceu e lhe explicou o que precisava de fazer para prosperar na posição de ala direito, como uma das asas de uma equipa com três centrais. Ganharam uma Premier League juntos e Moses, por fim, ganhou a constância que um futebolista precisa.

Antes, já tinha chegado o dia em que o fez ser um nigeriano que está hoje na Rússia, prestes a colidir, esta terça-feira (19h, RTP1), com uma Argentina a depender de alinhamentos cósmicos e de franca boa disposição dos deuses para ser alguma coisa neste Mundial.

Porque, de tão talentoso e prometedor que era, Victor Moses lá foi jogando em todos os escalões das seleções jovens inglesas (uma vez obtida a cidadania), marcando em dois Europeus e um Campeonato do Mundo. Ambicioso se tornou, naturalmente, até Stuart Pearce, o então selecionador dos sub-21, o utilizar apenas em um jogo, mas lhe telefonar, preocupado, quando soube que ele decidira representar a Nigéria na idade adulta.

É o que tem feito, nos últimos seis anos, jogando e voando com as super águias num voo que já pousou na Taça das Nações Africanas, em 2013. E em que o jogador que tem nome bíblico olha para cima, ou para onde a sua crença lhe apontar, e sabe que está ser olhado: “Onde quer que eles estejam, devem estar orgulhosos de mim. A olharem e a sentirem orgulho”.

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