Bélgica

Roberto Martínez, o discípulo de Confúcio: a história do espanhol forjado em Inglaterra que pode levar a Bélgica ao título mundial

Roberto Martinez (Bélgica)
Roberto Martinez (Bélgica)
David Ramos - FIFA/Getty

Aos 44 anos, o treinador catalão, que nunca treinou no seu país, está muito perto de fazer história pela Bélgica no Mundial. Depois de deitar por terra o sonho brasileiro do "hexa" com uma abordagem tática que deixou meio mundo de boca aberta, para Roberto Martínez, um jogador mediano que aos 22 anos aceitou um convite que lhe mudou a vida, seguem-se as meias-finais com a França (às 19h, na RTP1 e Sport TV1)

“Para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e na desgraça a qualidade”

Esta é apenas um dos centenas de aforismos sobre o comportamento humano e a vida em geral que o filósofo Confúcio nos deixou, para que pudéssemos, nestes tempos modernos, nortear a nossa existência.

E o que é que Confúcio tem que ver com Roberto Martínez, o espanhol que é selecionador da Bélgica? Diz quem sabe, e quem sabe é um dos seus melhores amigos e padrinho de casamento, Jordi Cruyff, filho de Johan, que Roberto Martínez é partidário de uma das frases mais conhecidas do pensador chinês.

“Escolhe um trabalho que gostes e não terás de trabalhar nem um dia na tua vida”.

Ou pelo menos dessa ideia, porque para Roberto o futebol não é trabalho e quando não trabalhas não precisas de folgas.

“O futebol é a vida do Roberto. Quando tenho uma folga, admito, tiro o dia todo para não pensar em futebol. O Roberto, por outro lado, mesmo nas folgas vive e respira futebol”, escreveu Jordi Cruyff na autobiografia do treinador espanhol, “Kicking Every Ball”, lançada em 2009. Sobre conhecer os amigos, no sucesso e na desgraça, Martínez esteve lá em ambos para o holandês: quando Jordi pensava desistir perante as insistentes lesões que marcaram a sua carreira em Inglaterra, era o espanhol que o amparava.

Em 2009, Roberto Martínez era treinador do Swansea, que por essa altura lutava pela subida à Premier League. Parece cedo para lançar uma biografia, aos 36 anos, a treinar no segundo escalão do futebol britânico. Porque quando resolver atualizar a história da sua carreira, o treinador catalão de 44 anos terá de fazer várias adendas.

E o último capítulo, caso ultrapasse esta terça-feira a França na primeira meia-final do Mundial (às 19h na RTP1 e Sport TV1), depois da surpresa que foi ter batido o favorito Brasil nos quartos de final, poderá muito bem ter como título “Como levei a Bélgica à vitória no Campeonato do Mundo”.

Um pioneiro em terras britânicas

Sobre o homem que nasceu em Balaguer, uma pequena vila perto de Lérida, há 44 anos, filho de um treinador de futebol, podemos dizer que não teve um percurso óbvio.

Quanto mais não seja, por nunca ter treinado no seu país.

Em 1995, Roberto Martínez era um jovem médio de 22 anos com tarimba nas divisões inferiores espanholas, depois de várias temporadas na equipa B do Saragoça. De regresso ao clube da sua terra, Martínez terminava o curso de fisioterapia e treinava uma equipa de miúdos quando recebeu o telefonema que lhe mudaria a vida.

A chamada vinha de uma pequena cidade nos arredores de Manchester. Chamava-se Wigan e à frente do clube local, que militava no 4.º escalão do futebol inglês, estava Dave Whelan, que viu antes de quase toda a gente o potencial que teria trazer estrangeiros com qualidade técnica para o físico futebol das divisões inferiores do país.

Roberto Martínez fez as malas e com ele seguiram mais dois espanhóis: Jesús Seba e Isidro Díaz. Era tão fora do comum ver estrangeiros a atuar no futebol inglês (e ainda para mais numa pequena cidade como Wigan) que rapidamente os espanhóis ganharam a alcunha de “Three Amigos” (“Os Três Amigos”).

Do trio, apenas Roberto Martínez se deu bem por terras britânicas. Seba e Díaz acabariam por sair do Wigan para iniciar uma carreira nómada que passou até por Portugal: Seba jogou no Chaves e no Belenenses enquanto Díaz teve passagens pelo Leça e também pelo Chaves.

Martínez em 1995, ainda cheio de cabelo, no seu primeiro ano como jogador do Wigan
Matthew Ashton - EMPICS/Getty

Para lá das diferenças culturais, numa entrevista ao “The Guardian” em 2009, o agora selecionador da Bélgica lembrou como o futebol era também diferente daquele que jogava em Espanha. “Eu era um médio com técnica e foi um choque enorme. Era mais como o râguebi, parecia que todas as ideias do jogo vinham dali. Como ganhar terreno, por exemplo. Não tínhamos a bola durante muito tempo e os jogadores nem sequer pareciam muito interessados nisso. Tive de me adaptar rapidamente, mas era um bom desafio. Nunca foi um problema”, sublinhou.

Depois do Wigan, onde jogou seis anos, Martínez fez toda a carreira na ilha. Passou pelos escoceses do Motherwell (onde conheceu a mulher), pelo Walsall, Swansea e Chester City. Aos 33 anos regressou ao Swansea como treinador-jogador, mas rapidamente optou por deixar os relvados e ficar apenas no banco, ele que entretanto havia tirado uma pós-graduação em gestão.

Adepto do futebol de posse do Barcelona de Johan Cruyff, de quem passou a ser uma espécie de afilhado depois de partilhar casa com o filho Jordi quando este jogava no Manchester United, Martínez tentou desde logo implementar um estilo ofensivo no segundo escalão inglês, uma ideia ainda ambiciosa no final da década passada.

Os bons resultados no Swansea voltaram a colocar Dave Whelan no caminho de Martínez, a quem tinha prometido, quando os espanhóis chegaram ao clube, colocar o Wigan na Premier League em 10 anos. A promessa foi cumprida e em agosto de 2009 Martínez, o “amigo” mais marcante, tornou-se treinador principal da pequena equipa da Grande Manchester.

A carreira de Martínez no Wigan foi marcada por alguma inconsistência que ainda hoje lhe é apontada como defeito. Com uma mentalidade de grande pendor ofensivo, os golos sofridos impediram muitas vezes a equipa de ir mais longe na Premier League: a vitórias frente aos gigantes ingleses, não raro se seguiam derrotas do mesmo campeonato do Wigan.

Pelo meio terá recusado um convite para ser adjunto de Alex Ferguson no Manchester United.

A última temporada de Martínez no Wigan, em 2012/13, é paradigmática: entrou na história do clube ao vencer a Taça de Inglaterra, mas acabou despromovido. Na época seguinte, foi contratado pelo Everton onde começou bem, ao conseguir o recorde de pontos do clube na primeira época, mas em maio de 2016 foi despedido, precisamente devido aos resultados pouco constantes.

Bélgica, o sítio ideal?

Viciado em trabalho, Martínez não ficou desempregado durante muito tempo. E desta vez o desafio era diferente. Não era um clube, não era em Inglaterra. A federação belga viu nas ideias ofensivas de Martínez o complemento perfeito para uma matéria prima que incluia Romelu Lukaku, Dries Mertens, Kevin De Bruyne, Eden Hazard ou Michy Batshuayi.

Depois de começar com uma derrota por 2-0 num particular com Espanha, a partir daí foi sempre a somar: a Bélgica foi a primeira seleção europeia a qualificar-se para o Mundial e na Rússia contam apenas vitórias. As três da fase de grupos, a reviravolta de 0-2 para 3-2 nos oitavos de final frente ao Japão e a vitória categórica que deitou por terra o sonho do “hexa” para o Brasil, naquilo que se pode chamar de banho tático de Martínez a Tite.

Uma seleção como a belga parece mesmo o habitat perfeito para Martínez. Uma equipa cheia de talento ofensivo, com muita experiência lá atrás, com um grande guarda-redes. E sem o desgaste do trabalho diário que tem um clube: nestas competições curtas, dilui-se aquele que era um dos problemas das equipas de Martínez, a inconsistência.

E depois de manietar o talento de Neymar e Coutinho e matar o Brasil nas transições rápidas e no talento e disciplina dos seus atacantes, Martínez terá esta terça-feira o próximo jogo mais importante da sua vida, frente a França, campeã do Mundo em 1998 com Thierry Henry, que o espanhol convenceu a acompanhá-lo nesta aventura belga como adjunto.

A final, essa, está ali mesmo ao lado. E não foi Confúcio quem o disse.

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