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規律. Ou como não era bem assim que o Capitão Tsubasa fazia as coisas

規律. Ou como não era bem assim que o Capitão Tsubasa fazia as coisas
Matthew Ashton - AMA

Os japoneses arriscaram tanto quanto um leão sem predadores que resolve fazer uma sesta na savana. Sem arrojo ou tentativas de fazerem algo diferente, perderam com a aborrecida Polónia (0-1). Seguiram para os oitavos-de-final porque, falando em cartões, foram mais bem comportados do que o Senegal, mas piores no entusiasmo, no espetáculo e nas coisas que ficam no olho, como a banda desenhada que inventaram nesse estilo. Ou seja, safaram-se pela disciplina

Nunca fui ao Japão. Nem uma ideia consigo fabricar do quão fortes são as avós japonesas, ou o que lhes poderão misturar na comida, entre as sopas de miso, o tonkatsu ou um yakitori, para os castigos às mãos das mães de mães, e dos pais, tão severos serem. O que sei vem da cabeça de Keisuke Honda, que escorreu sangue, ene vezes, por a avó lhe bater com força e feiura, quando ele fugia às aulas e à imobilidade dos livros para brincar às fintas com uma bola.

Keisuke é um japonês de olhos asiaticamente cortados, embora ao mesmo tempo esbugalhados, apertados pelas órbitas, que por acaso até está imóvel e sentado no banco de suplentes do Japão-Polónia, enquanto isto se escrevia.

É quem achou leve e bonita a pancada que levou, aos 8 ou 9 anos, plausível para ele, incompreensível para nós, porque “a estrutura de valores, objetivos e expressão no Japão é impossível de traduzir para outras culturas”. O traquina e sonhador Honda, ousado em sonhar alto na família modesta, pobre e encavalitada em escassos metros quadrados de uma casa, sentiu essa complexidade nas mãos castigadoras da avó.

Ou como ele diz, na “forma como ela o disciplinou”.

Não é preciso pôr os pés no Japão para, na nossa perceção coletiva do país, estar a disciplina como trave-mestra da cultura japonesa. Tanto filme, documentário, imagem de postal e estereótipos que gravitam à volta dessa noção terão alguma razão de ser, ainda mais quando os japoneses se apresentam no Mundial desta forma - ordeiros, ordenados, alinhados simetricamente em campo, a tentarem agir como é suposto agirem.

São bem capazes de ser a seleção mais disciplinada do torneio. E contra os polacos desapontantes, sem ponta de jogo coletivo, com uma previsibilidade de leste tão mecanizada, com tanto marasmo, que até o extraordinário Lewandowski parece um banal avançado, isso devia bastar-lhes. Se não existisse tal coisa como o excesso de disciplina.

Todos os japoneses são rápidos, ágeis, reativos. Têm toque de bola e, mais importante, têm presente que a bola é para tocar. O seu jogo é apoiado, aproximam-se uns dos outros, há tabelas a irem e a virem, variam a bola para outro lado quando concentram a pressão adversária neste, têm extremos a irem dentro para abrirem a ala aos laterais.

Fosse o futebol compilado em volumes de livros e ensinável, pelo estudo, para ser jogado como deve ser, os japoneses seriam uns exemplares e cumpridores alunos. Mas tão fiéis são a aplicar a teoria que a sua prática é um assim-assim. Estão nos sítios certos, no tempo certo, mas só o avançado Usami tem um remate à baliza.

Porque falta risco, arrojo e invenção, coisas que a disciplina abafa e também o treinador fez por abafar, deixando Inui, Kagawa e Osako sentados ao lado de Honda. Os únicos quatro marcadores de golos, os poucos com engenho e ideias para forçar coisas bonitas, eram suplentes, o equivalente a resumir que jogaram tipos piores do que eles nesse lado criativo do jogo.

Jogo tão parado, aborrecido, com tantas tentativas inconsequentes, jogadas enganadoras por até começarem bem ligadas e sempre terminarem mal decididas, que um letárgico parágrafo era suficiente para o descrever. Ou, no fundo, resumi-lo nos dois momentos, sim, empolgantes, para batermos nas próprias costas e nos congratularmos por estarmos a assistir.

O primeiro é quando a bola pára, liberta os polacos do seu parco jogo corrido e concede-lhes o cruzamento em que Bednarek faz o 1-0. O segundo é, porventura, a parada do Mundial, vinda do voo alado de Kawashima, imitador das acrobacias karatecas que se viam em “Capitão Tsubasa”.

O salto do guarda-redes japonês, arqueado no ar, a espernear para alcançar a bola cabeceada por Grosicki, digno seria da série de animação que era uma antítese imaginada a, deduzo, tudo o que os japoneses queriam, mas não viam, no futebol real: os dribles heróicos contra o mundo, os remates em que a bola tinha um volante para se desviar de tudo, o protagonista que corria incansável por campos quilométricos, inclinados e intermináveis.

A série libertava-os desta realidade mecânica e disciplinada, em que as notícias do outro jogo do grupo tornaram os últimos minutos no monumental, e triste, teatro. Os japoneses limitaram-se a passar a bola, só porque assim, perante a patavina que os polacos se incomodavam com isso. Esta fome paupérrima chegou ao ponto de obrigar Adam Nawalka, selecionador da Polónia, a pedir que um jogador se atirasse à relva para que o jogo parasse e Blaszczykowski pudesse entrar.

Se ninguém queria jogar, o árbitro com o jogo acabou, ignorando a substituição e dando início à espera para que o outro encontro terminasse. Aí, os aliviados japoneses sorriram por se qualificarem por bom comportamento, ganhando na luta de cartões amarelos com o Senegal (havia empate em golos e confronto direto) e seguindo pela terceira vez (em seis) para os oitavos-de-final do Campeonato do Mundo.

Os japoneses safaram-se, portanto, pela disciplina. 規律, escrito em japonês, como eles bem devem saber.

Alguém se lembra de isto acontecer com o Capitão Tsubasa? Pois.

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