O guia do Mundial feminino: a dupla Bola de Ouro no meio de um caos e as lesões entre campeãs

Treinador de futebol
Com cada vez mais adeptos nas bancadas, mais ligas profissionais e o nível de jogo a evoluir de ano para ano, o futebol feminino terá neste Mundial, a decorrer entre 20 de julho e 20 de agosto na Austrália e na Nova Zelândia, a sua maior competição de sempre. Apesar das muitas ausências por lesão e de outras tantas polémicas com várias seleções (como Espanha, Canadá, França, Nigéria ou Jamaica) a travar batalhas internas com as suas federações para alcançar melhores condições de trabalho e uma igualdade de oportunidades, haverá ao longo deste mês muitos pontos de interesse para seguir no torneio.
Com talvez mais seleções a poder ter uma palavra a dizer na luta pela vitória final do que acontece no futebol masculino, e com o grande público a ter um grau de conhecimento generalizado inferior ao que acontece no futebol praticado por homens, a competição promete ser imprevisível, surpreendente e, até, misteriosa pela forma como várias jogadoras irão aproveitar a montra para mostrar ao mundo o talento e nível que detêm.
O grupo C, composto por Espanha, Japão, Zâmbia e Costa Rica, poderá, à primeira vista, parecer algo desequilibrado, mas há fortes razões para considerar que não será bem assim.
Um dos temas quentes do futebol feminino internacional no último ano tem sido a desavença que reina na seleção espanhola entre jogadoras, o selecionador Jorge Vilda e a federação. Em suma, após o Euro 2022, a maioria do plantel espanhol protestou em conjunto contra os métodos e práticas do seu treinador, exigiu mudanças à federação, mas esta não cedeu e, durante vários meses, as jogadoras que haviam manifestado o seu desagrado deixaram de ser convocadas. Com o aproximar do Mundial, parte delas chegou a acordo para o seu regresso, mas outras há que continuam de fora – e algumas delas são das melhores do mundo na sua posição, como Patri Guijarro ou Mapi Léon, ambas pilares do FC Barcelona campeão da Europa.
A Espanha é, então, uma incógnita: se, por um lado, sem ausências poderia até ser a mais forte candidata à vitória final, tal é a evolução que tem vivido o seu futebol feminino nos últimos anos; por outro, o ambiente na equipa continua longe do melhor, as ausências são várias e de peso, e a concorrência é muita. O estilo de jogo, esse, não oferece dúvidas. A equipa, como no masculino, pratica um futebol posicional, apoiado, curto e baseado na posse de bola do seu 4-3-3 tradicional. Há, mesmo com as ausências, qualidade individual para um grande torneio, mas sobra a dúvida… quanto do futebol se joga fora de campo?
Num segundo plano, mas ainda como favorito a passar o grupo, surge o antigo campeão mundial Japão. Com tradição no feminino, o país nipónico procura seguir em frente no grupo C e, quiçá, aproveitar a instabilidade espanhola e fazê-lo em 1.º lugar. Com um futebol, também ele, onde prevalece a técnica das suas jogadoras, evidenciada na qualidade da circulação e da sua organização ofensiva, esta equipa dará dores de cabeça a qualquer adversário. O embate com Espanha será particularmente interessante, pois colocará frente a frente duas equipas que gostam muito de ter a posse de bola.
A Zâmbia é, por sua vez, a principal ameaça às duas favoritas. Embora se trate de uma equipa estreante em Mundiais, este grupo de jogadoras já esteve presente nos últimos Jogos Olímpicos e, na Copa das Nações Africanas de 2022, alcançou as meias-finais. Com as suas duas avançadas, Barbra Banda e Racheal Kundananji, a funcionarem como autênticas ‘setas’ apontadas à baliza contrária, a equipa africana pratica um futebol simples, que tem como objetivo municiar as duas referidas. Com espaço, as avançadas são quase imparáveis, tal a velocidade que ambas apresentam. Kundananji, ao serviço do Madrid CFF, acabou de apontar 24 golos na liga espanhola, inclusive dois ao FC Barcelona na última jornada do campeonato que resultou na única derrota das catalães na competição. Contudo, do ponto de vista defensivo, a equipa costuma sentir algumas dificuldades. Mesmo assim, no último amigável surpreenderam a poderosa Alemanha e venceram por 3-2. Cuidado com elas!
Já a Costa Rica será, teoricamente, a equipa mais frágil do grupo C. Com um nível individual bastante abaixo dos rivais, sobretudo de Espanha e Japão, e com uma convocatória surpreendente da selecionadora Amelia Valverde, que deixou de fora algumas das referências da equipa, como Shirley Cruz, a equipa da América do Norte tentará ser competitiva, mas dificilmente atingirá algo mais. Tendo um coletivo que aposta bastante na sua organização defensiva, a Costa Rica tentará prolongar ao máximo o período sem sofrer golos e, quando possível, procurará as jogadoras da frente para transições rápidas. Mas não se afigura tarefa fácil.
Alexia Putellas (Espanha): vencedora da Bola de Ouro nos últimos dois anos, a média ofensiva espanhola vinha sendo a referência maior do futebol feminino mundial até ter rompido o ligamento cruzado em julho de 2022. Com pouco tempo de jogo desde então, é claro que a craque do FC Barcelona não chegará ao torneio na sua melhor forma, mas a sua presença é sempre de assinalar: capacidade técnica, criatividade, golos e assistências é o que se pode esperar da espanhola.
Aitana Bonmati (Espanha): perante a ausência de Alexia, colega de seleção e de clube, Bonmati chegou-se à frente e, sobretudo no FC Barcelona, foi a ‘substituta’ da duas vezes Bola de Ouro no que toca ao rendimento alcançado em 22/23. Tecnicamente muito evoluída, com extraordinário conhecimento do jogo e tomada de decisão, a catalã é aquilo que imaginamos quando nos falam de uma ou um médio do FC Barcelona. E na última época juntou-lhe mais golos e assistências.
Racheal Kundananji (Zâmbia): talvez pudesse ser apresentada como a possível revelação do grupo, mas, depois da incrível época 22/23 que apontou, com 26 golos no total das competições ao serviço do Madrid CFF, emblema da 1.ª liga espanhola, é justo apontar a avançada como uma das craques a seguir. Com uma velocidade superlativa, a atacar o espaço é quase imparável, e, por isso, beneficiará de um possível jogo de transições que a sua equipa procurará sobretudo contra Espanha e Japão.
Maika Hamano (Japão): com somente 19 anos, a avançada japonesa foi em 2022 considerada a melhor jogadora do Mundial de sub-20. Pouco depois, foi contratada pelo Chelsea e emprestada ao Hammarby, da competitiva liga sueca, onde já leva 11 golos e três assistências. Poderá não começar como titular, mas a sua qualidade técnica e capacidade para definir os lances no último terço, por via da finalização ou do último passe, poderão ser muito importantes para a equipa nipónica.
Grupo D: a questão inglesa - quão longe é da Europa ao Mundo?
Se D for de Destaque, este é o grupo da Inglaterra: depois da conquista do Euro 2022 disputado diante do seu público, as expetativas para ver o que conseguem as Lionesses não podiam ser mais altas. No entanto, D também poderá ser de Dinamarca. As escandinavas são tradicionalmente uma seleção forte e as probabilidades apontam para que consigam o apuramento. Mais ou menos surpreendente seria o D ser de Dumornay, a jovem craque haitiana que jogará no Lyon na próxima temporada e é apontada como uma futura vencedora da Bola de Ouro. A China, claro, também não pode ser esquecida, mesmo que não seja evidente uma ligação com a letra do grupo em que calhou.
Voltando às campeãs da Europa, a Inglaterra chega a este Mundial com um género de mixed feelings. Venceram categoricamente o Euro no ano passado e o futebol feminino vive em terras de sua majestade um autêntico boom, impulsionado por tal conquista, mas, sustentado na evolução da Women’s Super League, a 1.ª liga inglesa, que conta com cada vez mais adeptos nas bancadas, melhores jogadoras em campo e um maior ambiente de profissionalização e mediatismo. Por outro lado, também é verdade que, comparativamente à equipa que conquistou a Europa, o plantel de Sarina Wiegman surge mais desfalcado: Leah Williamson, Fran Kirby e Beth Mead, três intocáveis da equipa, estão de fora por lesão, além de outras baixas que podem pesar. Ainda assim, o plantel é de qualidade e coletivamente já mostraram o nível que podem atingir. Mas nos últimos dois amigáveis, contra Portugal e Canadá, não foram além do 0-0…
A Dinamarca, por sua vez, não podia chegar a este Mundial em melhor forma: na qualificação, foram oito vitórias em tantos outros jogos e a equipa parece estar a superar as desilusões que foram os últimos grandes torneios, nomeadamente o Euro 2022 em que caíram logo na fase de grupos. Apesar do perfil físico acima da média, não se considere que estamos perante uma equipa sem criativas ou menos evoluída tecnicamente. Há várias jogadoras altas, capazes de se imporem num jogo mais físico ou nas bolas paradas, mas também a magia de Pernille Harder ou da jovem Kathrine Kuhl, que oferecem à equipa um travo criativo e artístico que por norma não se associa ao futebol escandinavo. Teoricamente, a equipa é favorita a passar, mas terá de ter cuidado com a China. O melhor resultado de sempre foram os quartos de final, pelo que atingi-los já seria considerado uma prova positiva – superá-los, um sucesso absoluto.
No entanto, para chegar a essa fase do torneio, terá, primeiro, de superar a concorrência no grupo D e isso significa bater a China, uma vez que dificilmente a Inglaterra não seguirá em frente. Depois de conquistarem a Copa da Ásia em 2022, a equipa chinesa, uma histórica no feminino que em 1999 foi batida apenas na final e que só falhou presença na fase final em 2011, quer agora recuperar o seu estatuto e isso significa qualificar-se para o ‘mata-mata’. Com algumas jogadoras em clubes de topo, como a lateral Li Mengwen, do PSG, ou a extrema Wang Shuang, de Racing Louisville, as asiáticas têm um estilo de jogo marcado pela simplicidade de processos. Com poucos passes procuram as avançadas, tendo em Wang Shanshan uma referência para a primeira bola, e o corredor direito, composto pelas já mencionadas Li e Wang Shuang, é o lado forte da equipa.
Por fim, o Haiti. A equipa da América do Norte vai estrear-se num Mundial e a vaga não poderia ser mais justa, uma vez que as haitianas tiveram um longo caminho para a garantir. Após uma fase de qualificação para estar na fase final da Concacaf, e conseguindo a partir daí um lugar de play-off de acesso ao Mundial, o Haiti ainda bateu Chile e Senegal, já na Nova Zelândia, para garantir a sua presença. Tudo isto só foi possível pelo extraordinário talento de Melchie Dumornay, de 19 anos, que depois de duas boas épocas no Stade Reims, já foi assegurada pelo Lyon para a próxima época. A equipa possui um perfil físico acima da média, com muitas jogadoras bastante atléticas e agressivas. Além da já referida Dumornay, as avançadas Batcheba Louis e Roselord Borgella, também elas a atuar em França, são outras das esperanças dos seus adeptos para a prova. Contudo, a presença na fase final será, em si mesma, um sonho alcançado. O que vier a mais é extra.
Keira Walsh (Inglaterra): média centro de régua e esquadro, protagonizou no passado verão a transferência mais cara de sempre no futebol feminino, deixando o Manchester City pelo FC Barcelona. A sua capacidade na construção, aliando qualidade de passe a uma visão de jogo e tomada de decisão do mais alto nível, é a sua imagem de marca. Por isso não é de estranhar que todo o jogo de Inglaterra passe por ela. Travá-la é meio caminho andado para bloquear o jogo inglês, mas é um caminho duro para quaisquer adversárias.
Pernille Harder (Dinamarca): com 30 anos, a média ofensiva dinamarquesa chega a este Mundial no auge da sua maturidade, mas também vinda de uma época irregular, marcada por uma lesão que atrapalhou o seu rendimento no Chelsea. Recentemente contratada pelo Bayern Munique, a craque é a principal referência da sua seleção e a forma como conseguirá, ou não, mostrar a sua qualidade técnica e assumir o jogo ofensivo da equipa será fundamental para o sucesso ou insucesso das escandinavas.
Melchie Dumornay (Haiti): apesar dos 19 anos, a haitiana é já uma certeza e não uma promessa do futebol mundial. Embora em França seja mais vezes utilizada como avançada ou extrema, posições a partir das quais mostra toda a sua velocidade, capacidade no ataque ao espaço, drible e qualidade de remate, na seleção costuma atuar mais recuada, no meio-campo. Tal justifica-se pela presença de Borgella ou Batcheba Louis, outras avançadas de bom nível que, se Dumornay jogasse no ataque, teriam de ser sacrificadas. Seja onde for, a craque de 19 anos joga bem e terá de ser controlada ou pode causar surpresas desagradáveis… para as suas adversárias.
Kathrine Kuhl (Dinamarca): com 20 anos, Kathrine trata-se de uma média ofensiva de grande qualidade técnica, criativa e forte tanto a gerir o jogo ofensivo da sua equipa como a defini-lo no último terço. Contratada pelo Arsenal no verão passado, viveu uma época de adaptação onde, apesar da juventude e da forte concorrência do plantel, disputou 18 jogos e deixou boas impressões. Antes, o Euro não lhe havia corrido bem, tendo sido expulsa no jogo inaugural e, por isso, tendo apenas disputado duas partidas. Chega um ano mais velha, com outra experiência adquirida no Arsenal, e pronta para assumir o protagonismo.
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