O guia do Mundial feminino: as eternas suecas do ‘quase’ e as alemãs com qualidade para dar e vender

Treinador de futebol
Com cada vez mais adeptos nas bancadas, mais ligas profissionais e o nível de jogo a evoluir de ano para ano, o futebol feminino terá neste Mundial, a decorrer entre 20 de julho e 20 de agosto na Austrália e na Nova Zelândia, a sua maior competição de sempre. Apesar das muitas ausências por lesão e de outras tantas polémicas com várias seleções (como Espanha, Canadá, França, Nigéria ou Jamaica) a travar batalhas internas com as suas federações para alcançar melhores condições de trabalho e uma igualdade de oportunidades, haverá ao longo deste mês muitos pontos de interesse para seguir no torneio.
Com talvez mais seleções a poder ter uma palavra a dizer na luta pela vitória final do que acontece no futebol masculino, e com o grande público a ter um grau de conhecimento generalizado inferior ao que acontece no futebol praticado por homens, a competição promete ser imprevisível, surpreendente e, até, misteriosa pela forma como várias jogadoras irão aproveitar a montra para mostrar ao mundo o talento e nível que detêm.
Talvez o mais equilibrado do torneio, o grupo G é composto por quatro equipas competitivas, que prometem tornar nivelados todos os jogos. Suécia, Itália, Argentina e África do Sul têm bases e estatutos diferentes, mas, ao contrário do que acontece em vários outros grupos, neste não há nenhuma equipa que pareça muito inferior às restantes.
A Suécia, claro, é a favorita à liderança deste grupo. Sempre percecionada como uma potência do futebol feminino, a verdade é que a formação escandinava já não vence uma grande prova desde o Europeu de 1984. Entretanto, as suecas têm sido a equipa do quase. Perderam a final do Mundial de 2003, as finais dos Jogos Olímpicos de 2016 e 2020 e as dos Euros de 1987, 1995 e 2001. Foram seis ocasiões perdidas para repetir a glória de 84, mas a verdade é que poucas equipas têm tantas chegadas ao derradeiro jogo. Será em 2023 que o ciclo inverte? Com um quarteto ofensivo de luxo, composto por Fridolina Rolfö (FC Barcelona), Kosovare Asllani (AC Milan), Sofia Jakobsson (San Diego Wave) e Stina Blackstenius (Arsenal), as suecas são um dos mais temíveis ataques do torneio. Por norma organizadas em 4-2-3-1, conciliam dimensão física, capacidade técnica e um ritmo de jogo elevado numa mistura que pode levar a equipa às fases de decisão.
Num segundo plano no grupo G, a Itália arranca com ligeiro favoritismo no que às contas do grupo diz respeito. Vinda de um Euro 2022 muito negativo (eliminação na fase de grupos, em que ficou em 4.º, sem qualquer vitória, tendo sido goleada pela França), a formação transalpina quer agora corrigir a imagem dada e mostrar o seu real valor. Com um plantel com boas jogadoras, muitas experientes (Girelli, Bonansea, Cernoia), mas algumas bastante jovens também (Beccari, Severini e, claro, o prodígio Giulia Dragoni, de 16 anos), as italianas não terão vida fácil face ao grupo em que calharam. Com 16 das 23 escolhidas a pertencer a Juventus e Roma, as duas maiores forças do futebol italiano, um dos trunfos das italianas é, como na seleção portuguesa, as rotinas que as jogadoras já adquiriram num 4-3-3 flexível, que se adapta ao rival.
A Argentina, que participará no seu quarto Mundial, ainda persegue o seu primeiro apuramento… e esta poderá ser a sua melhor oportunidade até à data. Embora a equipa feminina ainda esteja longe da qualidade (e peso/estatuto) da masculina no panorama do futebol mundial, a formação de Germán Portanova tem os seus argumentos. Com o núcleo duro, composto por Estefanía Banini, do Atlético Madrid, Flor Bonsegundo e Aldana Conmetti, ambas do Madrid CFF, já na casa dos trintas, as argentinas terão uma maturidade que pode fazer a diferença num grupo tão equilibrado. Não sendo muito fortes fisicamente, embora se trate de uma equipa agressiva, as sul-americanas terão de fazer os possíveis para que as partidas não ‘partam’ e ganhem um ritmo demasiado elevado. Aí, podem levar desvantagem.
Já a África do Sul chega a este Mundial após conquistar a Copa das Nações Africanas de 2022, e confiante por essa conquista inédita na sua história, mas simultaneamente com uma preparação turbulenta por problemas com a sua federação. Falta de pagamentos, pouca consideração pela equipa feminina e falta de condições de trabalho são alguns dos motivos de queixa das jogadoras que chegaram a boicotar um amigável a poucas semanas do arranque deste Mundial. Dentro de campo, as campeãs africanas parecem uma equipa que ataca melhor do que defende, pelo que poderão gerar encontros interessantes. Organizadas, mas com o dinamismo e irreverência própria do futebol africano, atuam em 4-2-3-1 e gostam de ter a bola, explorando bastante os corredores laterais. Jermaine, ex-SC Braga, é a referência ofensiva da equipa e tanto ela como as suas colegas, num dia bom, podem causar mossa. Prometem dar luta, mesmo que teoricamente partam ligeiramente atrás dos rivais no grupo.
Fridolina Rolfö (Suécia): embora no FC Barcelona venha sendo mais utilizada como uma lateral de cariz ofensivo, na seleção deverá ser opção na sua posição de origem, a extrema. Forte fisicamente, capaz no 1vs1 e com qualidade na execução quer no remate, quer no cruzamento, Rolfo vai ser certamente das maiores agitadoras do ataque sueco. Blackstenius, a avançada, poderá sair beneficiada da qualidade da jogadora do Barça no corredor esquerdo.
Valentina Giacinti (Itália): com 29 anos e tendo sido chave no regresso da Roma ao título em Itália, a avançada Giacinti chega ao Mundial no melhor momento possível. Os 20 golos apontados em 22/23 mostram a apetência da italiana para o golo, que chega ora pela boa capacidade finalização por que é conhecida, ora pela inteligência com que se mexe e esconde das marcações no último terço. Fisicamente também é interessante, pelo que estamos perante uma avançada completa e capaz de ajudar a Itália a fazer uma boa prova.
Estefanía Banini (Argentina): média ofensiva de grande qualidade, é a jogadora argentina mais consagrada do momento. Apesar dos 33 anos, ainda vive um bom momento, e prova disso foi o jogo que realizou frente ao rival Real Madrid, em que marcou e assistiu na reviravolta que deu ao seu Atlético de Madrid a Taça de Espanha. Tecnicamente evoluída, é inteligente e criativa. Se conseguir ter muita bola, é quase certo que criará oportunidades para as suas colegas.
Giulia Dragoni (Itália): com 16 anos (sim, dezasseis), Giulia foi a grande surpresa nas eleitas da treinadora Milena Bertolini. A jovem média ofensiva, que também pode partir dos corredores, assinou em 2022 pelo FC Barcelona e desde então tem jogado na equipa B das blaugrana. Apesar do talento ser claro e inegável, a pouca experiência ao mais alto nível fez desta uma escolha algo contestada. Contudo, caso Giulia acabe por ter minutos neste Mundial, quem não a conhece pode vir a ficar surpreendido…
O grupo H é composto por um gigante, a Alemanha, e três equipas, Colômbia, Marrocos e Coreia do Sul, que, sendo de um nível inferior, têm potencial para lutar pela segunda vaga na fase a eliminar. E há um pormenor curioso: Alemanha, Colômbia, Marrocos e Coreia do Sul foram, todas elas, derrotas nas últimas finais das respetivas competições continentais: Euro, Copa América, Copa das Nações Africanas e Copa da Ásia. Será, por isso, mais um grupo em que não se perspetivam facilidades, mas jogos competitivos em todas as jornadas.
A máxima ‘o futebol são 11 contra 11 e no final ganha a Alemanha’ aplica-se mais no masculino do que no feminino, mas é de esperar que, pelo menos no grupo H, as coisas sejam mais ou menos assim. Campeã mundial em 2003 e 2007, a equipa germânica procura o terceiro título desde então. Há um ano, as alemãs só caíram na final do Euro conquistado por Inglaterra, tendo dado muito boas indicações, e por isso chegam a este Mundial como uma das mais fortes candidatas à vitória final. Com qualidade individual para dar e vender, onde entre muitas destacam-se Lena Oberdorf no meio-campo e Alexandra Popp no ataque, a Alemanha é uma equipa completa. Forte do ponto de vista físico, mas também evoluída tecnicamente, que se pode impor tanto num jogo mais dividido, marcado por duelos e em que a bola role menos no relvado, ou, pelo contrário, numa partida mais ‘limpa’, até por via da sua forte capacidade de pressão. A expectativa é máxima e tudo o que não for lutar pelo título saberá a pouco.
Na luta pela segunda vaga do grupo H estarão as restantes equipas, sendo talvez a Coreia do Sul a ligeira favorita para o apuramento. Vencida pela China na final da Copa da Ásia em 2022, a equipa organiza-se num 3-5-2 e tem capacidade para ter bola, embora com um estilo bastante vertical. Apesar de contar com algumas jogadoras a atuar na Europa, a maior parte joga na liga do seu país. Um dos destaques é a média ofensiva Ji So-Yun, já com 32 anos, ela que esteve oito épocas no Chelsea e continua a ser peça fundamental para o seu treinador, o inglês Colin Bell, também ele muito experiente. Não precisando de muito para gerar ocasiões, a Coreia quer limpar a imagem que deixou em 2019, quando perdeu os três jogos da fase de grupos e foi eliminada na fase de grupos.
Já a Colômbia chega a este Mundial em fase ascendente, com o futebol feminino a ganhar expressão no país, tanto a nível de seleções como de clubes. Tendo perdido na final da Copa América para o Brasil, as cafeteras têm motivos para considerar que o futuro será risonho, dadas as boas prestações nos recentes Mundiais de sub-20 (chegaram aos quartos de final) e de sub-17, onde só perderam na final. Em comum às três competições está a prodigiosa Linda Caicedo, ela que ainda tem 18 anos e participou nas três provas, tendo depois sido contratada pelo Real Madrid, onde ganhou a titularidade de imediato. É extrema e será uma das referências do ataque, a par de Mayra Ramirez, ela que também atua em Espanha, no Levante, e também ela realizou uma grande temporada, tendo feito 16 golos e ajudado muito a alcançar o 3.º lugar na I divisão espanhola. Assim sendo, há potencial ofensivo claro e reais possibilidades para as sul-americanas de ultrapassar a fase de grupos. O equilíbrio defensivo será importante porque dificilmente a equipa não fará golos, pelo menos contra Coreia do Sul e Marrocos.
Por fim, a estreia de Marrocos, que é também a estreia de um país árabe num Mundial feminino. Com menos tradição do que as suas adversárias, o crescimento do futebol jogado por mulheres em Marrocos foi catapultado pela organização da Copa das Nações Africanas, em 2022, que foi um sucesso tremendo, até pela boa performance da sua equipa, que só perdeu na final. Houve recordes de audiência batidos em sucessão, tendo o máximo sido de 51 mil pessoas nas bancadas. Este entusiasmo tem alavancado o nível do jogo, mesmo nos clubes, onde o AS FAR, representado por sete jogadoras na seleção, conquistou a Liga dos Campeões africana. Individualmente, destaque para Rosella Ayane, avançada do Tottenham, que dá experiência e qualidade ao ataque, setor no qual é referência, sendo bastante solicitada pelas suas colegas. Coletivamente, Marrocos aposta em princípios simples e num jogo exterior no qual aposta bastante. É, em teoria, a menos forte candidata a passar no grupo H, mas a qualificação não é impossível.
Lena Oberdorf (Alemanha): com apenas 21 anos, mas já três temporadas como titular absoluta no poderoso Wolfsburg, e tendo sido considerada a jogadora revelação do Euro 2022, a média centro é imprescindível tanto no clube como na seleção. Forte com e sem bola, técnica e fisicamente, é muito completa. Importante a funcionar como primeira construtora das alemãs, mas também no momento da recuperação, particularmente na transição defensiva.
Alexandra Popp (Alemanha): a ponta de lança, que é também uma das capitãs da Alemanha, já conta 32 anos, mas nem por isso esqueceu a arte de marcar. Em 22/23 foram 24 golos ao serviço do Wolfsburg, o seu clube, tendo até faturado na final da Liga dos Campeões, onde foi derrotada pelo FC Barcelona. Fortíssima no jogo aéreo, muita agressiva a atacar zonas de finalização, o seu habitat é a grande área e é lá que pode marcar diferenças. Candidata a melhor marcadora da prova!
Linda Caicedo (Colômbia): uma das maiores promessas do futebol mundial, a extrema colombiana esteve em 2022 nos Mundiais de sub-20 e sub-17, e no dia em que fez 18 anos assinou pelo Real Madrid. É rápida, evoluída tecnicamente, forte no 1vs1 e tem golo. Resumindo, tem tudo. Já representou a principal seleção colombiana na Copa América… e chegou à final. Se estiver bem, a Colômbia pode chegar à fase a eliminar.
Jule Brand (Alemanha): tendo despontado no Hoffenheim, clube no qual apareceu com 18 anos, a extrema/média ofensiva alemã transferiu-se para o Wolfsburg em 22/23. Viveu uma época de adaptação, talvez sem o destaque que se esperaria dado o talento que detém, mas o potencial é enorme. Vinda de uma época de menor fulgor, pode não ser titular habitual das germânicas, mas ao longo da competição pode vir a ganhar espaço. Com perfil físico acima da média, é muito forte na condução e na forma como ultrapassa adversárias, tendo muito boa relação com bola, além da potência já referida.
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