Nnadozie foi expulsa de casa por causa do futebol, passou fome e o pai disse-lhe que seria ninguém na vida. Agora já é uma figura do Mundial
WILLIAM WEST
Defendeu tudo e um penálti no Nigéria-Canadá e já é um dos destaques do Campeonato do Mundo, tal como já tinha sido há quatro anos, em França, quando se transformou na mais jovem guarda-redes de sempre a manter uma baliza a zero naquele torneio. A história da futebolista do Paris FC, de 22 anos, não é um conto de fadas, mas transformou-a na rainha da convicção
Antes de Christine Sinclair investir na corrida para a bola que descansava na marca de penálti, por alguns segundos terá viajado certamente até ao futuro para saber que sabor tem ser a primeira futebolista da história a marcar em seis Campeonatos do Mundo. Diante dela, sorrindo e cintilando de amarelo e com os sonhos de miúda cicatrizados na alma, Chiamaka Nnadozie levantava o braço esquerdo, como que indicando algo. A guarda-redes nigeriana atirou-se mesmo para aquele lado, enterrando a mão quase, quase até à relva, numa belíssima defesa que poderiam exibir no Louvre, e depois ainda sacou a bola contrariando qualquer recarga.
A capitã nigeriana negou, além do momento histórico de Sinclair, o 191.º golo da capitã do Canadá, que assinou esta madrugada a assombrosa 324.ª internacionalização. Nnadozie foi a grande figura da estreia mundialista da Nigéria, uma seleção que marcou presença em todas as edições do torneio (1991-2019). Foi precisamente no último, com apenas 18 anos e 186 dias, que Chiamaka se enfiou na história desta modalidade ao tornar-se na mais jovem guarda-redes a manter a baliza a zero num Campeonato do Mundo.
Mas esta coisa de vermos o produto acabado, ou o lado maquilhado da história, é uma armadilha. A trajetória de Chiamaka Nnadozie, agora levada em ombros invisíveis, é tudo menos maravilhosa e glamourosa. Rapariga oriunda de uma família pobre, cedo percebeu que não teria uma vida académica para salpicar a sua vida com conhecimento e as virtudes da companhia de outros jovens desassossegados como ela. Uma qualquer labuta seria o único destino na sua bússola calibrada quando ainda se movimentava no útero da mãe.
Nessa vida juvenil, pautada por descobertas e primeiras vezes, a bola começou a atrair a sua atenção. O futebol começou a intrometer-se na batalha com o sangue pelo protagonismo nas veias. De enamorada pelos caprichos daquele brinquedo redondo, evoluiu para menina decidida. O futebol seria o caminho. Mas o pai e o irmão torceram o nariz imediatamente, pois aquilo nunca seria vida para uma rapariga. Havia que aprender uma atividade qualquer para ganhar a vida. Com tanta contrariedade caseira, por que continuou? “Por causa do meu pai”, admitiu numa entrevista ao “Eagles Tracker”. “A certa altura, disse-me que eu não seria ninguém na vida. Ele concluiu que eu seria uma pessoa inútil.”
E expulsou-a de casa.
Este acontecimento levou-a a assinar um acordo consigo mesma num papel feito de nuvens: se não conseguisse ser jogadora até aos 20 anos, aceitava a derrota, voltava para trás, ia ter com o pai e pedia-lhe desculpa.
Chris Hyde - FIFA
Na academia, onde aprendeu as elementares coisas do futebol e foi testada a lateral e avançada antes de ir para a baliza, treinou muitas vezes descalça e sem luvas. E com o estômago vazio. “Às vezes, tínhamos de implorar por comida na rua”, confessou na mesma entrevista. Com sorte, amigos ou os pais dos amigos davam-lhe uns trocos e lá ia ela a um restaurante trocar aquilo por um bocado de arroz. Já a mãe, às escondidas, roubava algum dinheiro ao pai para ajudar a carreira da filha.
Ainda com 14 anos, Nnadozie foi chamada para a seleção sub-17, um episódio que deu de comer à sua convicção. “Quando o meu pai me viu na televisão, chamou-me de volta a dizer que eu era a sua filha”, recordou. Com 18 anos, lá está, foi uma das figuras do Campeonato do Mundo de 2019, jogado em França. É aí que joga hoje, no Paris FC, onde chegou em janeiro de 2020. Antes, atuou entre 2016 e dezembro de 2019 no Rivers Angels FC, da Nigéria, onde a teimosia que não era teimosia e que a fez enfrentar o pai foi transformada em realidade e futuro.
Com a seleção, a guarda-redes de 1.80m e que tem Manuel Neuer como ídolo disputou o Mundial de sub-17 e sub-20, em 2016 e 2018, e a Taça das Nações Africanas no final de 2018. Mas a fama aumentou imparavelmente no último Campeonato do Mundo. Nesse mesmo 2019, foi considerada a melhor guarda-redes africana. O selecionador da Nigéria, o norte-americano Randy Waldrum, considera-a uma das melhores guardiãs jovens do mundo.
Consta por aí que é a melhor cantora do balneário nigeriano, demonstrando dotes na música gospel. E parece que também dança bem, pode ler-se no perfil dela no “The Guardian”. No final do Canadá-Nigéria, que terminou sem golos, foi acarinhada pelas colegas, recebeu o prémio de melhor jogadora da partida e tirou selfies com alguns nigerianos que estavam na bancada. “[A Christine Sinclair] é uma das melhores”, admitiu Nnadozie, de 22 anos, na conferência de imprensa depois do jogo. “Na última vez que joguei contra elas, ela marcou-me um golo. Fiquei muito chateada. Disse para mim mesma: ‘esta é a oportunidade para corrigir as coisas. Por isso, agora está 1-1."
Depois de tudo isto, não é nem um pouco surpreendente que tenha sido capaz de travar um penálti de Sinclair e, na verdade, de congelar o Canadá inteiro. A história de Chiamaka Nnadozie não é glamorosa ou maravilhosa, é certo, mas pertence à realeza do desporto. Afinal, o futebol é um jogo jogado por pessoas.