Mundial Feminino 2023

“Onde está o dinheiro?”: as fissuras na federação não afastam as nigerianas e Randy Waldrum do sonho mundialista

“Onde está o dinheiro?”: as fissuras na federação não afastam as nigerianas e Randy Waldrum do sonho mundialista
Elsa - FIFA

A seleção nigeriana está virada do avesso com salários em atraso, dirigentes a meter o dedo nas convocatórias do treinador e a comitiva que voou para o Campeonato do Mundo conta com um staff limitado. Randy Waldrum, o selecionador, deu uma entrevista no início do mês que destapou as agruras que vive o grupo

É uma casa a arder. Porém, é uma casa a arder com uma música belíssima a tocar lá dentro, acompanhada pelo som dos passos dançantes e corajosos de um grupo de mulheres. O futebol nigeriano está num limbo entre os problemas das jogadoras e treinador com a federação e o Campeonato do Mundo, onde aquelas futebolistas estão a fazer coisas maravilhosas.

Randy Waldrum, o norte-americano que escolhe as atletas e as táticas, não se coíbe de colocar os dirigentes da federação nigeriana debaixo do holofote. Nos primeiros dias de julho, num podcast, Waldrum admitiu que até há pouco tempo tinha 14 meses de salário em atraso, um drama que foi cortado para metade pouco antes daquela entrevista.

O treinador, natural de Irving, Texas, revelou ainda no mesmo dia que havia jogadoras que não recebiam há dois anos. E por isso sucederam-se as notícias dando conta daquela fissura bem no coração da federação, ficando em aberto a possibilidade de as jogadoras nigerianas boicotarem os jogos do Mundial, que se disputa desde 20 de julho e onde as africanas somam um empate contra o Canadá e uma vitória contra a Austrália.

O boicote não era uma hipótese, garantiu Waldrum, uns dias antes da estreia no torneio, em Melbourne. “Vamos estar lá. Tudo isso aconteceu antes de virmos para aqui e penso que a equipa, desde que chegámos, focou-se apenas no Canadá”, disse o norte-americano à Reuters, depois de um treino.

“Estivemos reunidos na primeira noite, quando chegámos, e concordámos em não continuar a discutir o tema, e que estaríamos aqui para fazer o nosso trabalho”, acrescentou. “Vamos focar-nos no nosso trabalho e deixar as pessoas adequadas tratarem do assunto.” Na altura, Waldrum recusou-se a entrar mais a fundo no assunto que divide a federação nigeriana, dando a entender que há mais queixas por parte do elenco de futebolistas.

Elsa - FIFA

Mas o problema é realmente agudo e aquela entrevista no podcast “On the Whistle” destapou as muitas camadas da questão. Um estágio que estava prometido antes da viagem para a Austrália foi cancelado. Por falta de verbas, o que, juntando aos temas de salários em atraso, leva o treinador de 66 anos a perguntar “onde está o dinheiro?”, pois a FIFA entregou em outubro, segundo o próprio, quase 875 mil euros a cada federação participante no Campeonato do Mundo de 2023.

O queixume continuou. A FIFA autoriza 22 elementos do staff, informou, mas a federação deu-lhe apenas 11. Ou seja, não conta durante o torneio com um analista, não tem scouts, não tem sequer quem lhe veja os jogos dos adversários do grupo, denuncia.

Mas Waldrum revelou também que perdeu um adjunto como consequência de não convocar uma determinada guarda-redes. O técnico teve de lembrar os dirigentes que no contrato estava uma linha em que previa que era ele quem decidia as convocadas. A ausência de Lauren Gregg prejudicaria gravemente o andamento das sessões de treino, reconheceu o texano.

Apesar de tudo, não abandonou o barco por causa das jogadoras, garantiu. E a equipa estava num bom momento, antecipava o treinador com um dedo que adivinha. “Os meus problemas com a federação são os meus problemas. Vamos assegurar-nos de que quando chegarmos lá a equipa perceba que temos de fazer o nosso trabalho. Não tem nada a ver com elas, vamos fazer o melhor que podemos. Mas não vou ficar calado.”

Entretanto, o diretor de Comunicação da federação nigeriana chamou-lhe “tagarela incompetente”. Ademola Olajire acusou o treinador de querer apenas estar num Mundial, explicando que os jogos pelo mundo fora secaram os fundos. O treinador ripostou, meio enigmaticamente, e disse que há pessoas perto daquela comitiva que preferem ver a seleção perder.

Justin Setterfield

Mas, se há mesmo quem queira ver a Nigéria perder, a sorte não é muita. A estreia com o Canadá demonstrou que aquela gente com fardas impecáveis foi para o torneio mais especial de todos competir como feras. Chiamaka Nnadozie, a guarda-redes que na juventude foi expulsa de casa por querer jogar futebol, foi a melhor em campo, parando tudo, inclusive um penálti, evitando assim que Christine Sinclair alcançasse os 191 golos pela seleção canadiana na 324.ª internacionalização.

A seguir, contra a equipa da casa, as nigerianas deram a cambalhota no marcador contra a Austrália. O golo decisivo foi marcado, pois claro, por Asisat Oshoala, a avançada do Barcelona, a mítica jogadora que já foi cinco vezes melhor futebolista africana e que é a única daquele continente a ser nomeada para uma Bola de Ouro. Que estas jogadoras consigam, com tantos problemas e chamas à volta, continuar a jogar e a fazerem o que gostam com um rendimento tremendo é admirável.

“A mentalidade da equipa é incrível”, reconheceu Waldrum, após a vitória na segunda jornada da fase de grupos. “Teria sido fácil termos desistido antes do intervalo depois de elas marcarem, mas as jogadoras responderam imediatamente.”

E acrescentou: “Elas mostraram uma grande resiliência para recuperar e virar o jogo ao contrário na segunda parte. Acho que a equipa tem um espírito incrível e a química delas é inacreditável. Enquanto tivermos isso, podemos bater qualquer um.”

A Nigéria vai agora jogar a última jornada com a já eliminada República da Irlanda da especial Katie McCabe. As africanas passaram sempre da fase de grupos desde 1999, sendo que nessa ano, num torneio disputado nos Estados Unidos, alcançaram os quartos de final. Foi o melhor desempenho das Super Falcons.

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