Quando Nouhaila Benzina entrar em campo por Marrocos no Mundial, o mundo que proibia as meninas de jogarem futebol com hijab será outro
Alex Pantling - FIFA
Em 2007, Asmahan Mansour, na altura com 11 anos e a disputar um torneio numa cidade do Canadá, foi impedida de jogar futebol porque tinha um hijab. A FIFA entrou imediatamente em campo e sentenciou a mesma medida para o futebol planetário. Em 2014, a história começou a mudar e no Mundial sub-17 da Jordânia, dois anos depois, foi normalizado verem-se jogadoras no relvado com o véu islâmico. Agora, só falta acontecer o mesmo no maior palco do futebol
Puxemos a fita até fevereiro de 2007. Quando Asmahan Mansour, uma menina de 11 anos, ia entrar em campo num torneio indoor em Laval, nos subúrbios de Montreal, no Canadá, o árbitro disse-lhe que não podia jogar. Para além do equipamento habitual e das botas, Asmahan tinha um hijab (véu islâmico), o mesmo que recusou a tirar por causa de um jogo de futebol.
A decisão dela manteve-se, assim como a do árbitro, que era muçulmano e que teve o respaldo da organização, argumentando motivos de segurança. Como resultado desse incidente, além da solidariedade incrédula das suas companheiras, a equipa de Asmahan Mansour e outras quatro abandonaram o torneio, alegando que aquela era uma regra racista.
A história chegou então à FIFA e foi aí que a regra se tornou transversal ao futebol planetário. A entidade que rege o futebol mundial defendeu, tal como a regra da Associação de Futebol de Quebec, que havia perigo de asfixia. Os regulamentos começaram a falar na proibição de “equipamento que é perigoso para o próprio ou outro jogador”.
A FIFA amoleceu então, cinco anos depois, e permitiu que a Confederação Asiática de Futebol conduzisse um teste em que as jogadoras estavam autorizadas a usar o hijab. A decisão não chegou a tempo de evitar que a seleção feminina do Irão tenha vivido uma desclassificação por ter entrado em campo com hijab, num jogo contra a Jordânia, de qualificação para os Jogos Olímpicos, em 2011.
“Foi uma frustração horrível”, desabafou então Katayoun Khosrowyar, uma jogadora daquela seleção iraniana. Tínhamos treinado durante anos para podermos gerar aquele grande impacto e isso foi-nos simplesmente tirado. Tivemos de sair porque o mundo não estava pronto para ver mulheres a jogar com hijab.”
Em 2014, na sequência da intervenção de grupos de direitos humanos e ativistas, essa proibição foi levantada. As palavras de Jerome Valcke, o então secretário-geral da FIFA, foram históricas: “Foi decidido que as jogadoras podem cobrir as suas cabeças para jogar. Foi decidido que os jogadores homens também podem cobrir a cabeça. É uma cobertura básica e a cor deve ser a mesma da camisola. Esta é uma autorização mundial”.
Um par de anos depois, o Mundial de futebol feminino na categoria de sub-17, na Jordânia, marcou o aparecimento normalizado dos véus islâmicos na cabeça das jovens jogadoras. A regra, desconfiava-se, traria outra publicidade e popularidade àquela modalidade nos país muçulmanos.
Robert Cianflone
Mas, e apesar de a nova regra ter sido aprovada há alguns anos, ainda não aconteceu num Campeonato do Mundo sénior vermos uma atleta de véu. E tudo será diferente se Nouhaila Benzina entrar em campo com a farda de Marrocos, naquela que é a primeira presença daquele país neste torneio, durante a estadia da sua seleção no Mundial da Austrália e Nova Zelândia.
A defesa, de 25 anos, não jogou contra a Alemanha, na jornada inaugural da fase de grupos, num jogo que as africanas foram castigadas até a um penoso 6-0. Marrocos, um país que certamente ainda está sedado depois do desempenho da equipa masculino no Catar, é também o primeiro país árabe a qualificar-se para um Mundial.
“As raparigas vão olhar para a Benzina [e pensar] ‘podia ser eu’, disse ao “The Independent” Assmaah Helal, a cofundadora da Muslim Women in Sports Network. “Também os decisores políticos e administradores vão dizer: ‘Precisamos de fazer mais no nosso país para criar estes espaços inclusivos de aceitação e abertura para mulheres e raparigas para participarem no jogo'”.
Nouhaila Benzina, a número 3 de Marrocos no Mundial, joga no FAR Rabat, um dos clubes mais populares do país, vencedor da Liga dos Campeões africana em 2022 contra o Sundowns. A defesa fez o jogo todo.
A atenção da imprensa tem estado em cima da futebolista, que certamente deverá preferir ser conhecida pelas façanhas desportivas do que pelo simples facto de usar um hijab. Talvez por isso não tenha dado ainda entrevistas ou falado aos jornalistas. Mas não deixa de ser um capítulo histórico, não deixa de ser o culminar da luta de muitas e de muitos que consideravam este passo como obrigatório. Representar outros ou dizer sem dizer que aquele lugar também pertence a tantos não é algo lateral nem banal. A verdade é que em França, há cerca de um mês, o Supremo decidiu a favor da proibição do hijab no futebol feminino, na sequência de alguns políticos terem alegado que o estado laico estaria em risco.
Antes do torneio começar, Ghizlane Chebback, a capitã das marroquinas, deu o mote: “Sentimos que temos a grande responsabilidade de dar uma boa imagem e mostrar o que a equipa de Marrocos tem feito”. A imagem de uma só jogadora talvez aproxime à modalidade outras raparigas e mulheres. Quem sabe, os olhos de Asmahan Mansour, a tal rapariga de 11 anos que foi impedida de jogar num torneio no Canadá, estejam postos em Nouhaila Benzina no domingo, quando Marrocos defrontar a Coreia do Sul. E o mundo em que cresceu deixará de ser igual.