Entre um mar de lágrimas após a eliminação do Mundial, havia felicidade vinda do futuro: “Daqui a uns anos, o resultado será outro”
A reação do banco português à bola ao poste de Ana Capeta
Fiona Goodall - FIFA/Getty
Na zona mista depois do nulo contra os EUA, as jogadores dividiram-se entre o “orgulho” pela exibição e a tristeza da saída de cena depois de um duelo em que a equipa jogou “muito à bola”, afirmou Catarina Amado. Capeta garantiu ter “sonhado” nos instantes após o remate que enviou ao poste, enquanto Kika sentiu que este foi o “primeiro dia do resto” da sua vida. E, talvez, também do futebol feminino português
Pela zona mista do Eden Park talvez não tenha passado nenhuma portuguesa cuja face não mostrasse marcas de lágrimas, fossem elas mais ou menos recentes, mais ou menos intensas. Enquanto as jogadoras dos Estados Unidos da América iam respondendo às questões da numerosa imprensa que as segue num clima de insatisfação e tensão, por se entender que as bicampeãs têm estado abaixo do exigido neste Mundial, as futebolistas de Francisco Neto iam passando cabisbaixas, uma a uma, mas praticamente unânimes na análise feita à noite de Auckland.
Ao 12.º confronto, Portugal continua sem ter conseguido, sequer, marcar por uma vez aos EUA, mantendo-se a diferença de golos num sintomático 39-0. Mas um empate que, noutras ocasiões, seria até motivo de festejo, foi aqui ocasião para uma exibição de tristeza e frustração coletivas.
Nenhum momento simboliza tão bem o quão perto ficaram os oitavos de final como o remate de Ana Capeta ao poste. Aquele instante centrou, naturalmente, atenções entre as diversas vozes que foram falando no túnel que fica debaixo da bancada principal de Eden Park.
A avançada que esteve quase a protagonizar o momento mais glorioso desta seleção explicou, na primeira pessoa, aqueles segundos. “Caí ao chão e só vi a bola bater no poste. Nos milésimos de segundo em que estive no chão, eu sonhei. Sonhei que poderíamos estar a fazer história, sendo as primeiras a eliminar os EUA numa fase de grupos”, confessa.
SAEED KHAN/Getty
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Dolores Silva, a capitã, estava longe do tiro de Capeta, mas achou “mesmo que a bola ia entrar”. Quando o poste esquerdo não sorriu a Portugal, Jéssica Silva, uma das que tinha a face mais encharcada pela tristeza, diz ter pensado que “alguém não estava a querer que isto acontecesse”.
Perante 42.958 espetadores, a maior assistência de sempre num encontro de futebol — masculino ou feminino — na Nova Zelândia, a equipa de Francisco Neto esteve quase a protagonizar o impensável. Com as câmeras da Netflix bem atentas e a gravarem um documentário sobre as rainhas do soccer, Ana Capeta admite que “estragar a série seria qualquer coisa”. Brincando enquanto luzia uma triste face, a alentejana imaginou: “Invertíamos os papéis e tinham de fazer uma sobre nós.”
A “frustração”
Vários adjetivos e frases foram utilizados para passar a mesma ideia: o “sabor amargo” dito por Catarina Amado e Kika Nazareth; o “agridoce” expresso por Inês Pereira; a “frustração" de Jéssica Silva.
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O multiplicador da tristeza foi o quão perto esteve o que, antes do desafio, poderia parecer quase impossível. Há mais de 4.400 dias que as norte-americanas não perdiam um jogo num Mundial, comprovativo estatístico do poderio das adversárias que estiveram a centímetros de serem derrotadas.
“Uma coisa seria sabermos que não tivemos hipóteses, o que não foi o caso”, confirma Kika Nazareth, que entende que Portugal “controlou sempre o encontro”, com base “no coletivo, no talento, na vontade e no crer”.
Esta foi, no plano pontual, a melhor fase final da equipa de Francisco Neto. Depois dos três pontos no Europeu de 2017 e do ponto somado no ano passado, em Inglaterra, a equipa sai da Nova Zelândia com quatro pontos, dois golos marcados e um sofrido.
Ainda assim, Ana Borges, a mais internacional de sempre, coloca um “se”, tão do futebolês, no trajeto português na Oceânia: “Se não tivéssemos dado a primeira parte do jogo contra os Países Baixos, se calhar estaríamos ainda em competição, mas não podemos estar a pensar nisso”. Frente às neerlandesas, Portugal demorou 82 minutos para efetuar um remate à baliza rival.
Na roda sinal após o empate, havia caras ensopadas em lágrimas nas jogadoras portuguesas.
Hannah Peters - FIFA
O sentimento dominante, depois da tristeza, era o orgulho. Inês Pereira, Ana Borges ou Dolores Silva utilizaram mesmo essa palavra, com a capitã a descrever a exibição como “uma das melhores de sempre” da seleção ao serviço do qual tem já 152 internacionalizações.
“Encostámos as bicampeãs do mundo à área delas”, afirmou Inês Pereira, a primeira guarda-redes portuguesa a manter a baliza inviolada contra os EUA. Usando linguagem do calão da bola, Catarina Amado lançou um “jogámos muito à bola”.
“O primeiro de muitos”
É uma ideia recorrente nesta equipa: uma seleção que joga, simultaneamente, no passado, representando as futebolistas de ontem, no presente, competindo para levar o futebol feminino a outros patamares, e no futuro, procurando inspirar mais a juntarem-se ao jogo.
Dolores Silva, capitã portadora desta mensagem, utilizou-a com convicção: “Queremos continuar a inspirar a mulher portuguesa, a inspirar todas as que nos viram e, em vez de olharem só para o nome nas costas das dos EUA, olharam para o nome nas costas das portuguesas. Certamente vamos continuar a abrir portas para o futuro, a inspirar e a querer ser melhores”, explicou a centrocampista do SC Braga.
Hannah Peters - FIFA/Getty
Os últimos anos mudaram a face do futebol no feminino em Portugal, mas continua a não haver uma liga totalmente profissional e a existir um mundo de diferenças para a consolidada realidade e aposta nos Estados Unidos da América. Durante 90 minutos, os universos diferentes cruzaram-se e escassos centímetros impediram o David de derrubar o Golias, mas a trajetória tem de continuar a ser ascendente.
Neste sentido, Inês Pereira acredita que “este Mundial vai potenciar bastante o futebol feminino português”. E isso passará, necessariamente, por tornar a presença nestes cenários normal. “Espero que tenha sido o primeiro de muitos campeonatos do mundo”, deseja Capeta. Jéssica Silva vai da intenção à promessa, assegurando que, em 2027, “Portugal lá estará”.
Quando já não havia norte-americanas no corredor onde a tristeza portuguesa foi verbalizada, Kika Nazareth ainda se dedicava a responder às mais variadas questões que lhe fizessem. Entre “agradecimentos” ditos aos jornalistas por “terem vindo tão longe”, a criativa diz ter sentido que este foi “o primeiro dia do resto” da sua vida, tal foi o impacto das emoções vividas.
Revelando, também, que não foi substituída por lesão — “é sempre frustrante sair, mas entrou a Jacinto, que é igual ou melhor que eu” —, Kika revelou uma intenção de olhos postos no futuro: “Gostava de, um dia, ser eu uma Carole Costa, uma Borges, uma Dolores, uma Carolina Mendes. Uma referência.”
A mais nova de sempre a marcar elogia o “trabalho incrível” da Federação com as associações e clubes e prevê que “a bola de neve à volta do futebol feminino começará a andar”, levando a “mais investimento, mais aposta, mais meninas a jogarem e mais talento”.
“Daqui a uns anos o resultado será outro.”
O remate de Ana Capeta foi ao poste, mas, se um dos objetivos principais da seleção na Nova Zelândia era inspirar e criar referências, então o tiro terá sido bem certeiro. Voltando a citar Kika, “estamos só no começo”.