Mundial Feminino 2023

Acabou a luz de Marta, a rainha do futebol, mas só em Mundiais

Acabou a luz de Marta, a rainha do futebol, mas só em Mundiais
Alex Pantling - FIFA

A surpresa da Jamaica calhou ser à custa do Brasil, que já não ficava pela fase de grupos desde 1995. E, forçosamente, ‘a’ mulher do futebol a quem os brasileiros chamam ‘Pelé de Saias’ despediu-se assim dos Mundiais, à sexta participação. Com 37 anos, Marta não conseguiu ser a primeira pessoa a marcar em meia dúzia de torneios, mas, em lágrimas, voltou o farol do futebol feminino em palavras: “Apoiem, continuam a apoiar. Para mim é o fim, para elas é só o começo.”

Ressalvemos as diferenças, que respeitosamente são maiores do que o charco Atlântico a separar Portugal do Brasil, mas, durante a transmissão deste jogo, Edite Fernandes, lendária ex-capitã da seleção nacional, comentava a invisível aura a rodear Marta Vieira da Silva Veiga, ou simplesmente Marta, só Marta, basta Marta, e ‘comparava-se’ a Marta. Como qualquer repetição, esta sujeita-se a irritar o juízo, ainda nem 10 minutos havia de ação contra a Jamaica e a abundância de bola para a seleção brasileira era um pretexto para a atenção se focar na capitã do futebol da ginga e do samba.

Dizia Edite Fernandes que em alguns períodos dos derradeiros raios de sol da sua carreira sentiu, tal como Marta, as adversárias a olharem-na de forma diferente, a reagirem em bicos dos pés só pelo facto de ela estar em campo, mesmo que já órfã das aptidões físicas que escapam a qualquer futebolista no lado cadente dos trintas. Com o ‘Pelé de Saias’, como há muito a alcunham os brasileiros, isto será exponenciado vezes mil: ganhadora de seis Bolas de Ouro e única pessoa a levar cinco dessas distinções seguidas, a carismática Marta foi a primeira mulher a virar estrela global do futebol, sobretudo, pela estratosférica aptidão em fazer malabarismos com a bola enquanto supera corpos em campo.

Fosse a humilhação futebolística um crime e Marta teria penas de prisão perpétua acumuladas, seria uma crónica reclusa, houve tempos em tempos pré-internet-viralizadora de vídeos em redes sociais quando a brasileira desmantelava adversárias umas atrás das outras que a teria feito ser falada ainda mais do que é hoje, que tem 37 anos e joga o seu sexto Mundial. Já não é a Marta das correrias celestiais que sozinha virava uma partida do avesso, é a Marta do esforço doseado ao milímetro que cola a bola ao pé esquerdo e tenta, uma vez mais, acrescentar à sua história - e ser o ou a futebolista a conseguir marcar em meia dúzia de edições de Campeonatos do Mundo.

Ela insiste em tentá-lo, é notório a léguas que saliva pelo recorde quando remata de qualquer maneira com o seu discreto pé direito aos 5, ajeita com demasiados toques outra tentativa, com o esquerdo, aos 11’, levando uma companheira ao desespero esbracejado na área, por não receber um passe da capitã quando estava sozinha; aos 35’ vira ranzinza por momentos, queixosa com impropérios lançados ao ar quando choca com uma jamaicana que lhe magoa um pé; e aos 38’ isola Debinha, que não faz o remate ir à baliza. Marta é um polvilhado de apontamentos tímidos numa seleção do Brasil que se trama pela pressa em querer marcar os golos de uma vitória que estavam obrigadas a conseguir.

DeFodi Images

A Jamaica aguenta-se sem precisar de eira, nem beira, basta-lhe uma organização coesa atrás da linha da bola para se resguardar dos passes que as brasileiras, superiores na técnica e no jeito, forçam em vez de pensarem com paciência. O ‘10’ de Marta vagueia entre as centrais e descidas no campo para distribuir a bola, mas ela escasseia, tem de baixar no campo para aparecer, à hora de jogo já anda um pouco por todo o lado a revoltar-se contra o que parecia ser o desvanecer da sua luz, de um possível derradeiro jogo da carreira num Mundial. Já na véspera, em lágrimas com a hipótese de ser a “última conferência de imprensa”, agigantou-se à la Marta, como tantas vezes o fez, dizendo:

“Hoje a gente tem as nossas próprias referências, isso não teria acontecido se tivéssemos parado nos primeiros obstáculos, é uma persistência contínua que não começou só comigo, mas com muita gente lá atrás. Temos muito orgulho e pedimos muito para que a nossa geração continue a inspirar cada vez mais meninas e meninos, não importa a idade. É lógico que fico muito feliz de ver tudo isso. Há 20 anos, em 2003, ninguém conhecia a Marta, na minha primeira Copa. 20 anos depois, a gente virou referência para muitas mulheres no mundo inteiro e não só no futebol, no jornalismo também, porque vemos muitas mulheres aqui que não víamos antigamente. Então, acabámos por abrir portas para a igualdade.”

Inspiradora nas palavras, o teor intervencionista e ativista da jogadora que mais eco tem cada vez que fala já perdera os refreios por altura do anterior Mundial, em 2019, onde Marta escolheu ir sem patrocinadores desportivos. Calçou botas pretas e luziu-as a cada oportunidade, em protesto por os valores dos contratos que as marcas lhe ofereciam nem chegarem a metade dos praticados com futebolistas homens. Pintou os lábios com um batom cor de vinho, que ilustrava a sua “vontade em deixar sangue no campo”. E, na então despedida nos oitavos de final, chorou com um apelo icónico a quem viesse depois dela: “Não vai ter uma Marta para sempre, uma Cristiane, uma Formiga. E o futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Chore no começo para sorrir no fim.”

Este Mundial que levou a Melbourne neste último jogo a genial Marta, voz das mulheres no futebol, ‘a’ Mulher da bola, acabaria por obrigar a brasileira a mais um momento desses. A sua influência no jogo minguou com a desinspiração da sua seleção e aos 80’, quando foi substituída, apressou-se a sair e bater palmas com as três jogadoras que iam entrar. Assim, mera figurante num momento banal e robótico do futebol, era a despedida de Marta. As suas compatriotas insistiram, correram, tentaram, mas o mais parecido com perigo na baliza jamaicana foi um corte trapalhão da defesa Allysson Swaby.

Ao último apito, na desilusão brasileira inundada pelo êxtase das jamaicanas - há 28 anos, em 1995, foi a última vez que o Brasil ficara pela fase de grupos -, Marta estava já encasacada, curvada sobre as pernas e a roer as unhas pintadas de verde de uma das mãos. Com os olhos a lacrimejar, cheios de um pranto anunciado, tentou sorrir nos cumprimentos a adversárias, ao treinador jamaicano que iria “beber um par de cervejas para acalmar”. Quando chegou a um microfone, a única pergunta feita sabia ao que ia e escusou-se a desviar o foco na grandeza da ocasião.

Marta foi questionada sobre que mensagem queria deixar, e Marta foi Marta:

“É difícil falar num momento destes, nem nos meus piores pesadelos a Copa que sonhava. Mas é só o começo. O povo brasileiro pedia renovação, estão a ter. Acho que a única velha aqui sou eu - talvez a Tamires próxima de mim - a maioria são meninas com muito talento e um caminho enorme pela frente, é só um começo para elas. Eu termino aqui, mas elas continuam. E vocês pediram renovação. Quero que as pessoas no nosso Brasil continuem a ter o mesmo entusiasmo que estavam a ter quando começou a Copa, que continuam a apoiar, porque as coisas não acontecem de um dia para o outro. A gente vê seleções que vinham para a Copa e levavam sete ou oito [golos] e agora jogam de igual com os grandes, isso mostra que o futebol feminino vem a crescer, que é um produto que dá lucro, que é um prazer de assistir.

Então apoiem, continuam a apoiar. A Marta acaba por aqui, não tem mais Copa para a Marta, mas estou muito grata pela oportunidade que tive em jogar mais uma e muito contente com tudo isto que vem acontecendo no futebol feminino no mundo. Continuam a apoiar, porque para elas é só o começo. Para mim, é o fim da linha. Obrigado.”

Como há quatro anos, Marta usou um fim seu para não falar de si, mas de todas, especialmente das que ficarão depois dela e das que deverão vir a seguir. Porque este pode ser o final de Marta em Mundiais, com 17 golos em 23 jogos e uma final perdida (2007), só que nunca seria o findar definitivo da luz da rainha do futebol feminino. Falando com os olhos encharcados, fitando cada vez mais a câmara à medida que prolongava o discurso, Marta falou para os brasileiros e o mundo. A mulher que mais brilhou com a bola a querer dirigir a repercussão das suas palavras para um brilho que afete todas as outras mulheres futebolistas.

O brilhante feito das jamaicanas, órfãs de apoios da sua federação e dependentes de donativos (até da família Marley), que se junta a sua às surpresas da Nigéria e África do Sul que também sobreviveram à fase de grupos, seria sempre ofuscado pela despedida de Marta. Por muito que este Mundial seja outro de mais recordes de assistência, telespectadores e outros que não os dela, a brasileira sabe o futebol feminino necessita de cuidados constantes contra o desinvestimento. E, no adeus, a brasileira falou com esse aviso, foi a voz que se esperava ouvir. É por isso que a luz de Marta não finda e ela se insurgiu, mais uma vez.

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