Mundial Feminino 2023

Na casa de um Marcelo perdido de otimismo, mais uma selfie com a seleção que “fez o impossível” e esmagou “os mais machistas dos machistas”

Na casa de um Marcelo perdido de otimismo, mais uma selfie com a seleção que “fez o impossível” e esmagou “os mais machistas dos machistas”
TIAGO PETINGA/Lusa

O Presidente da República fez questão em receber as jogadoras portuguesas em Belém, onde discursou, cheio de entusiasmo, para lhes agradecer “em nome das portuguesas” e as elogiar, sem travão, pela prestação no Mundial. Como há meses, quando conseguiram a qualificação, Marcelo Rebelo de Sousa inundou-as de otimismo: “Agora têm de sentir o avanço para o passo seguinte. Eu estou nessa, têm que estar nessa”, que é a conquista do Europeu de 2024

Começando pelo fim, ouvido um discurso a puxar o lustro ao proverbial ‘eu avisei’ e condizente com cerimónias passadas no Palácio de Belém, o primeiro ato de Marcelo Rebelo de Sousa mal se afastou do microfone foi o esperado. Ele próprio o anunciou, risonho, preparadíssimo a fazer do seu braço um tripé e de um dedo o gatilho de mais um disparo dos seus, desde que é Presidente da República - “e vamos tirar a selfie, porque é a selfie que pronuncia a vitória no Campeonato da Europa”. Na mesma frase, a última que lhe saiu quando tinha a palavra, duas características tão do Chefe de Estado quando lhe toca tratar de futebol feminino.

Já há meses, o otimista Marcelo, em modo anfitrião da seleção que pintara de fresco o inédito apuramento para o Mundial, exultara as jogadoras a irem atrás da conquista do troféu. “Tinha-vos pedido que fizessem tudo, mas mesmo tudo, para tornar o impossível, possível”, lembrou, sem pó algum na memória, bem antes de caminhar logo em direção de Kika Nazareth, que já tinha o telemóvel esperto preparado para lhe passar. O Presidente recuou uns metros, armou o braço como em milhentas outras ocasiões, fez o obturador funcionar e depois virou o meiocampista do futebol destas receções: distribuiu abraços, passou-bens e “muitos beijinhos”, como antes também avisara, pelas jogadoras da seleção.

Ali estavam 24 - faltavam Maria Alagoa e a Joana Martins, lembradas no prélio por Francisco Neto, o selecionador que não as convocou, mas chamou para estágio e fazerem “parte deste projeto” -, todas vestidas de igual e recém-chegadas de quase 24 horas de viagem pelos ares da Nova Zelândia. Porventura de rastos, certamente vidradas no discurso de um Marcelo que quis ir pelo impalpável da façanha trazida pela seleção do outro lado do mundo: “Eu disse que vos recebia aqui, mais cedo ou mais tarde receberia sempre, porque começou, com a vossa presença na Nova Zelândia, a vitória do próximo Campeonato da Europa e, depois, no próximo Campeonato do Mundo. Já estamos no amanhã, mas vamos falar um bocadinho do ontem.”

Perante as prisioneiras do jet lag, o Presidente divagou elogiosamente sobre cada um dos três jogos da fase de grupos. Do quão “melhor jogaram” face à “Holanda” que lhes marcou “um golo fortuito” e contra quem “não jogaram apenas de igual para igual, mas tiveram longos momentos em que jogaram de superior para inferior”; contra o Vietname que “poderia ter sido 10-0, ou 8-0, ou 6-0, com mais sorte ou isto ou aquilo, foi um domínio claríssimo”; frente aos EUA, “quem parecia campeã do mundo era a vossa equipa” e Marcelo vulgarizou as bicampeãs em título como “as outras” que “andaram a gerir o tempo para tempo morto”. E não perdoou: “As consideradas melhores jogadoras do mundo… Era ler a linguagem gestual, a aflição com que tentavam ir a todas as bolas.”

TIAGO PETINGA/Lusa

Nutrindo os simbolismos, foi atrás de mais uma analogia convenientemente futebolística, em modo repetente. Se de início recordara como pediu “o que é por vezes tratado como garra, mas é mais, que é dar tudo, mesmo tudo, para além do tudo - e deram”, fixou-se depois nos ressaltos ganhos pelas futebolistas nessa partida que empataram (0-0) depois de perderem (0-1, Países Baixos) e de ganharem (2-0, Vietname). “E ganharam ressaltos, que significa duas coisas, estar em forma física e ter a capacidade de dar tudo por tudo”, eis Marcelo Rebelo de Sousa a fechar circuitos dentro do seu próprio discurso.

O malfadado poste direito da baliza dos EUA, aqueles 12 centímetros de largura metálica onde a bola rematada por Ana Capeta fez ricochete para fora de campo, já nos descontos, teve o seu fado também questionado pelo Presidente. “Por que é que a bola bate ali certinha, e tantas vezes bate e entra?”, atirou, sendo motivo para aplicação universal, pois “acontece muitas vezes na vida”. Indo buscar o “milhão e quatrocentas mil pessoas” que “às 8h da manhã” viram as jogadoras portuguesas serem “verdadeiramente excecionais”, concluiu, sem espinhas, como Portugal “estava, e está, mobilizado” para “a vossa causa e a causa da mulher no desporto e na sociedade portuguesa”.

Fixando a mira no nervo do que vem do âmago do preconceito e contra o qual o futebol feminino luta, e terá de lutar ainda mais, ainda vaticinou: “Os mais machistas dos machistas, os mais marialvas dos marialvas, estão esmagados. Eles não faziam aquilo. Por isso digo que começou o amanhã, que se chama Campeonato da Europa.” Mais um tiro da sua fisga oratória que Marcelo foi apanhar mais adiante.

TIAGO PETINGA/LUSA

E agradeceu, repetiu os ‘obrigados’ às jogadoras, nunca individualizando e mantendo-se fiel ao plural que alastrou a “milhões e milhões de portugueses”, só especializando o agradecimento “em nome das portuguesas”. Justificou como “aquilo que fizeram por todas as portuguesas, não tem preço” porque elas, “ao fim do percurso” de Portugal, tinham “mais 60 centímetros do que os homens mais próximos com quem conviviam”. Marcelo Rebelo de Sousa não o disse, mas neste âmago há mais do que resultados desportivos - há o sentimento de pertença, a sensação de representatividade cativada por futebolistas que choraram pelo país, falaram diretamente ao país, puseram o país como causa e consequência de tudo o que jogaram.

As pessoas, certificou o Presidente da República, “pressentiam o orgulho do papel da mulher no futebol e na sociedade portuguesa - Quem lhes deu esse sentido de orgulho? Vocês.”

Depois, sim, individualizou o discurso esperançosamente, em jeito de ‘eu em vós’ porque assegurou que receberia sempre a seleção hoje, ontem, amanhã ou houvesse Jornadas Mundiais da Juventude, ou não, realçou Marcelo que “recebo-vos na altura em que, por um triz, não atingiram a meta que desejavam, para ter autoridade moral para vos receber na próxima vez”. Perdido de otimismo, constatou que “seria uma injustiça ser o [seu] sucessor a ter essa alegria” de abrir as portas de Belém às jogadoras portuguesas campeãs da Europa - a prova é em 2024, primeiro há que garantir a qualificação. “Eu estou nessa, têm que estar nessa, e nessa digo-vos que há uma vantagem enorme: não está lá os EUA.” O humor também presente.

Viria a selfie, trocar-se-iam os abraços e os beijinhos, o Presidente dos afetos a distribuí-los a eito. Mais uns quantos obrigados terão sido devolvidos pelas futebolistas da seleção nacional, quase todas elas repetentes nestas receções em Belém, pois de Marcelo ainda ouviram, entusiasticamente: “Vocês são as melhores e têm noção de que são as melhores, porque jogaram com o que havia de melhor e foram melhores. Um poste impediu que isso se traduzisse, mas e depois?, são as melhores.”

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