Mundial Feminino 2023

O Mundial acabou para as australianas, mas os gritos e o êxtase mostram que venceram mais do que uma medalha

O Mundial acabou para as australianas, mas os gritos e o êxtase mostram que venceram mais do que uma medalha
Cameron Spencer/Getty

A Suécia ganhou (2-0) às anfitriãs do Mundial e ficou, pela quarta vez, com o 3.º lugar no torneio num jogo que voltou a ser barulhento, entusiasmante e cheio de um público nas bancadas a vibrar com qualquer coisa que acontecesse. É o efeito que uma seleção australiana teve no seu país, que vibrou como nunca com o futebol feminino e bateu recordes de audiência na TV

De repente, o sepulcro do silêncio.

A árbitra estivera com as mãos apoiadas na TV abeirada do relvado, vira uma e outra repetição. As almas presentes no estádio de Brisbane assistiram também. Com o jogo em suspenso, nem por isso o ruído esmoreceu, manteve-se a intensa barulheira de fundo com se houvesse um êxtase coletivo no ar impossível de amainar. Mas, quando a única mulher com um apito e auricular deu meia volta e fitou o relvado, as bocas calaram-se, o som ausentou-se por um segundo. A própria árbitra hesitou, pasmada com as tréguas sonoras feitas para ouvir o que ia dizer: “Decisão final, é penálti.”

O bruá reacionário foi diferente, os decibéis já não em tons festivos e de entusiasmo, mas em graves mais de desagrado. Soava até a espanto, a maralha australiana parecia tão imersa no transe da adrenalina que não colocara a hipótese de algo pudesse ir contra a Austrália, de atentar ao bem da sua seleção; os sentimentos tribais absorvem-nos, por momentos, para outra dimensão e o remate rasteiro da sueca Fridolina Rolfö, calma e composta a 11 metros da baliza, prenunciava um corte no entusiasmo exacerbado que às vezes nem deixava que se ouvisse a voz dos comentários televisivos. Imagine-se então lá no estádio, em Brisbane, no meio de 49 mil pessoas.

No ideário de muito boa gente, o Austrália-Suécia seria um jogo desnecessário por servir para determinar o 3.º e 4.º lugares do Mundial, ao qual a FIFA se agarra nas suas provas apesar das dúvidas acerca da sua relevância. O futebol tornou-o quase obsoleto - importa assim tanto averiguar quem fecha o pódio e quem vai para casa sabendo que chegou às meias-finais, mas com duas derrotas seguidas?, será bom obrigarmos equipas a mastigarem a tristeza de ficarem a uma unha da final e arranjarem forças para mais uma partida? Definitivamente, australianas e suecas responderam ‘sim’ a ambas.

Matt Roberts - FIFA

Com safanões constantes e jogada a ritmo alto, se bem que nem por isso sempre bem jogada, o entusiasmo no ar era mais do que palpável durante a primeira parte: houve remates espetaculares (de Hayley Ruso), tentativas à barra (Rolfö), correrias loucas a arrancarem berros das bancadas (Sam Kerr) e duas equipas a pressionarem alto, a todo o campo, forçando um estilo direto que mantinha quentes das gargantas dos adeptos australianos. Reagiam a tudo, um mero duelo a meio-campo era percebido como uma oportunidade flagrante de golo por um público a quem tudo servia de desculpa para vocalizar o seu entusiasmo. O tempo nunca o esmoreceu, ao contrário do ímpeto das australianas no campo.

Quiçá levadas pelo contágio deste fervor, as australianas atiravam-se de cabeça para todos os ataques, não temia contra-atacar rápido e partir em transições ofensivas na vertigem, sem pensarem nas consequências. O jogo cedo se partiu na segunda parte, as médios de parte a parte era iô-iôs de duelos, ressaltos e segundas bolas para lançarem as respectivas atacantes. Nesta cadência louca, sem paragens, a Austrália expôs as suas diferenças para a Suécia dotada de melhores futebolistas, outro andamento e capacidade física para aguentar esta redoma. Uma correria de Kosovare Asllani que lançou Fridolina Rolfö pediu à canhota a devolução de um cruzamento para a capitã bater, de primeira, um 2-0 que parecia pesado demais até para a alegria que enchia o recinto.

As australianas tentaram, insistiram, bateram bolas longas para a área em qualquer falta a meio-campo e carregaram pelo ar. Quando a força da natureza que é Sam Kerr, a querida de um país, chocou com Magdalena Ericsson e teve de sair para receber assistência, o aplauso que se ouviu enterneceu. Era a minúscula fatia do carinho de um país, a que encheu praças e inundou ruas de cidades com festejos de cada vitória da seleção, a vociferar um derradeiro ‘hurrah’ à sua capitã. Engolida, mastigada e digerida por um jogo jogado pelo ar, só com bolas despejadas na área que não favoreciam uma das melhores avançadas do mundo, o carinho esteve lá para a acolher.

A Suécia ganhou e ficou com o 3.º lugar deste Mundial, mais um - é a quarta vez que fecha o pódio - para o país pioneiro, onde a federação delega o mesmo orçamento para as seleções masculina e feminina. À oitava participação, a seleção da Austrália leva a melhor prestação de sempre e, sobretudo, inculcou-se bem fundo nos corações de uma nação que transpira paixão por desporto, mas, nas suas gotas de suor, não escorriam grandes atenções para o futebol feminino. Este foi o torneio que terá mudado essa perceção.

Os berros de excitação, os gritos reacionários a qualquer acontecimento no jogo e o êxtase emanado das bancadas refletiu o colarinho no qual a seleção australiana agarrou o carinho de uma nação. A meia-final perdida contra a Inglaterra foi vista por um pico de 11,1 milhões de lares, fora os outros tantos que assistiram nos ecrãs gigantes montados nas praças das principais cidades do país. Foi a maior audiência televisiva registada na Austrália desde 2001, período em que o país conquistou três Campeonatos do Mundo de críquete e esteve em duas de Mundiais de râguebi, modalidades donas de maior popularidade do que o futebol feminino.

Quiçá isso mude a partir daqui, de uma derrota e de um 4.º lugar que são tudo menos isso. “Talvez tenhamos ganhado mais do que uma medalha”, suspeitou Tony Gustavsson, o sueco que é selecionador da Austrália, provavelmente certeiro na sua intuição. O futebol feminino ganhou incontáveis vozes no país e a julgar pela barulheira ouvida durante um mês, elas não se vão calar tão cedo.

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