Para lá da grandeza, para lá de tudo, estão as espanholas, campeãs do mundo que não precisam de convencer ninguém
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Guiadas, na final e em todos os jogos, pela calma monumental de Aitana Bonmatí, a melhor jogadora do torneio, a Espanha é, pela primeira vez, campeã mundial de futebol feminino. Venceu (1-0) a Inglaterra numa final das grandes, porque o futebol jogado por mulheres tem uma grandeza com muito por ensinar aos homens que perdem tempo, teatralizam e rebolam na relva onde elas só querem, simplesmente, jogar
Para lá da grandeza é o quê, exatamente? Como tudo, o contexto é tudo, há que atentar ao nariz onde assentam as lunetas que leem a frase e o Mundial ao qual ela se aplica. É bonito apagar as luzes de um estádio atolado de gente para, no relvado, deixar iluminadas as letras “beyond greatness” que boa-vindam as jogadoras que lá entram para a final do Mundial, grandeza com certeza isso, serem capazes de chegar ao cume da bola cujo trilho só é visível a cada quatro anos, claro que é isso e a FIFA sabe-o, é fácil encaixar-lhe o slogan cheio de pompa e também de nada, por muito que a entidade o venda como algo para “unir e inspirar as pessoas à volta do mundo”.
Não é a FIFA, encabeçada por um presidente com cifrões nos olhos, que une e inspira com uma frase bonita. São as futebolistas. Não é a preocupação de Gianni Infantino em louvar para fora a boa-nova de a entidade não ter perdido dinheiro com este Mundial, encantado com o “break-even”, nem será mais uma das suas infelizes tiradas, quando disse há dias que as mulheres têm de “escolher as batalhas certas” na questão da igualmente de pagamento, condecorando-as gentilmente com o “poder de convencerem” os homens sobre “o que têm ou não de fazer”. Alguém se esqueceu de rever o slogan do torneio para o qual tanto clamou por investimento.
Porque grandeza não é dizer isto, que faz mirrar um torneio espetacular e abate neblina sobre uma prova onde as grandes inglesas e as grandes espanholas acabam a convergir em Sydney, elas sim as portadoras de grandeza e a quererem ir um coche mais além. A Inglaterra decidida a pressionar a todo o campo, com a corda das flechas esticada atrás para lançar as setas pontiagudas das suas avançadas airadas, Alessia Russo e Laura Hemp, a segundo cedo rematou à barra depois de a seleção armar cercos às defesas espanholas, onde depositava as tentativas de roubar a bola nas adversárias mais acessíveis em soluçar com a posse.
Há grandeza em estudar os outros, identificar fraquezas, limar a estratégia e aplicá-la em conformidade, as inglesas tentaram-no, Russo e Hemp desfaziam-se em diagonais e ataques à profundidade aquando de qualquer receção das médias inglesas de frente para o campo, Hemp ainda teve outro remate mais dócil e às mãos de Cata Coll, mas a convergência de grandezas, aos poucos, assomou as leoas. Do outro lado, a relação de cada espanhola com a bola, amigas de casa e de sonhos, aplaudidas com entusiasmo quando os seus nomes se anunciaram no estádio, engrandeceu-as na final.
Com a pequena grande Aitana Bonmatí no centro do universo passador, ela a feiticeira dos truques que mostram a bola a quem esteja por perto e logo a fazem desaparecer, o carrossel de Espanha girou sem precisar de moedas, Teresa Abelleira atrás de Aitana e Jenni Hermoso à sua frente garantiam a sua andadura, esperando pela largura que davam as laterais e pelos momentos em que a atleta Salma Paralluelo pudesse ser largada na corrida. A quase olímpica, crescida a dividir-se entre os 200 e 400 metros de pistas de tartan e os cento e poucos de um relvado, não acertou num cruzamento de Olga Carmona que a viu na pequena área e acertaria depois em cheio no poste, quase ao intervalo, a passe da outra lateral, Ona Batlle.
Pelo meio houve a grandeza das coisas simples, as mais difíceis de encetar num jogo de futebol. Com a Inglaterra já encurralada pela teia espanhola, aprisionada no espaço na frente onde as suas avançadas pediam todos os passes e enlameada no lodo a meio-campo, Lucy Bronze arriscou correr com a bola da direita para o centro, direta à bocarra da baleia que a esperava. O difícil que é jogar fácil, de repente, não pareceu assim tão complicado: cercada, a inglesa foi desarmada e a Espanha, de imediato, executou a clássica escritura dos manuais da bola, atacando o espaço vazio com Carmona a correr para lá, o passe entrar e ela rematar.
Que grande é ver um golo simples (29’) a ser conseguido no meio do intrincado e complexo jogo de Espanha, deve ser frustrante contrariá-lo em campo e a sapiente Sarina Wiegman, selecionadora das campeãs europeias e treinadora na sua quarta final seguida entre Europeus e Mundiais, marimbou para a linha de três centrais para ter as ideias selvagens de Lauren James na segunda parte. As inglesas necessitam de engenho técnico no interlúdio das jogadas, sem isso não chegariam à área.
E demoraram, porque as mudanças no sistema tática e o afã em quererem esticar os ataques até à baliza, movidas pela pressa, foram fatiando a final pequenos pedaços de ataques rápidos a responderem a contra-ataques, um caos onde a Espanha ainda conseguiu encontrar alguma ordem. Os pés de Aitana pairavam sobre a relva e desencataram dois remates além de esconderem a bola até Mariona Caldentey estar à entrada da área, pronta a evadir-se de adversárias e a passar à baliza, onde Mary Earps se esticou na parada fotografável. A guarda-redes berrou, ainda só vira Hemp a quase chegar a um cruzamento do outro lado, lá longe, antes de presenciar um possível desastre mesmo à sua beira.
Sem querer, um dos braços de Keira Walsh, a mover-se livre e independentemente na emergência de evitar ser driblada dentro da área, tocou na bola com que Abelleira a ludibriou. A final do Mundial teve um penálti (67’) e pousou, a 11 metros da baliza, um dos maiores escrutínios que pode ser feito a qualquer futebolista. Há que ter talento, pés, aptidão, agilidade, criatividade e rasgo para encantar no campo, mas antes do físico há a grandeza mental que o sustenta e a malandra Lucy Bronze insistiu, chateou e apontou para a bola que Jenni Hermoso não pusera bem sobre a marca. Adiou-a, fê-la reparar no tempo em vez de levar o seu tempo e a espanhola, quando rematou, foi dócil e a guarda-redes Earps rugiu.
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O grande momento da final escancarou a rendição das inglesas ao seu estilo, no tempo que tiveram foram diretas na procura da área, verticais no estilo de atacar e rápidas a quererem chegar com a bola às suas atacantes. A Inglaterra queria pressa, um prejuízo urgia-as; e as espanholas tentavam achar algum critério nas suas ações, procuravam a calma no meio da tempestade.
A urgência das campeãs europeias fê-las esquecer de Lauren James, a sua mais talentosa, a inglesa com cartolas nas chuteiras e coelhos para desvendar, mas o estilo de jogo direto sobrevoou a jovem do Chelsea, até depois de sozinha inventar o remate que sacou a única defesa assustadiça de Cata Coll. Os vaivéns constantes que tornaram a final num jogo de puxa-corda não devolveriam uma chance, nem sequer algo parecido, as inglesas ansiavam com o desespero e precipitaram-se a cada ação.
Os descontos de 13 minutos, quase meio prolongamento, só viram Ona Batlle a cheirar a golo com um sprint fenomenal área dentro, sintoma de uma Espanha a deixar-se levar pelas energias. É tramado remar contra a maré, há circunstâncias que superam humanos e nem com a intermitente Alexia Putellas em campo, dona da coroa de melhor do mundo mas com o corpo ainda cheio do pó de uma lesão, ao lado de Bonmatí, a Espanha se acalmou nas vezes em que teve a bola. Carecia de pausa, calma e pedras de gelo nos pés, só que é fácil escrever a partir daqui, a milhares de quilómetros e mundos de distância de imaginar o que é ter de jogar naquela grandeza de ocasião.
As campeãs são as espanholas, as grandes espanholas, entraram no Mundial em posse de bola e de lá vão sair com a mesma propriedade, elas em lágrimas, aos pulos, a abraçarem-se quando, há um ano, três delas eram parte das 15 que abdicaram de ser convocadas pela grandeza de uma causa maior do que elas. Queriam um selecionador e equipa técnica melhores, que subissem o nível, que não houvesse mais regras como a que as proibia trancar as portas dos seus quartos de hotel antes que Jorge Vilda lá fosse verificar se estava tudo bem e daí os assobios, os apupos e os búús ouvidos quando o nome do selecionador foi anunciado no estádio, antes da final.
Sabe-se lá com que ambiente, com que tensão no ar, o treinador também é campeão do mundo vindo de uma convulsão interna que aguentou e resolveu, ou que se recusou a reconhecer com brio, isto já não sabemos, tão pouco é percetível o que representará a Espanha reinar no futebol feminino - será a força de mulheres que se revoltaram por melhores condições, ou o estaticismo de homens (Luis Rubiales, presidente da federação do país, é um fervoroso apoiante do seu selecionador) que se mostraram inamovíveis quando as jogadoras os tentaram convencer de que mereciam mais?
Nos primeiros foguetes de festa após o último apito, as jogadoras rejubilaram para o lado do campo e a equipa técnica ficou longe, perto dos bancos, a celebrar fechada em si. As imagens sugerem interpretações.
E as próximas semanas trarão lições. Mas, rebobinando, as jogadoras espanholas são as maiores das grandes futebolistas que estiveram neste Mundial, na montra mais espanpanante de que o melhor dos convencimentos a ser feito das mulheres para os homens é no campo. Lá, na relva onde elas não rebolam em agonia, não teatralizam o que é inexistente, não barafustam por minudências nem arrastam jogos para a lama de simulações, o tempo útil de jogo é maior e o frenesim do seu ritmo não pára de aumentar com a equivalência que as jogadores, finalmente, vão tendo em condições nos seus clubes e seleções para limaram o físico que permite acelerar uma partida de futebol.
Alegres e sorridentes, as espanholas são agora as melhores e as maiores, unidas em torno do troféu quando a organização da FIFA já iluminara o “beyond greatness” à frente do palco onde as vencedoras ergueram o caneco. Como Andrés Iniesta em 2010, pouco antes Olga Carmona, uma das capitãs, explicou a razão para ter levantado a camisola após o golo: “Quero dizer que esta vitória, o que conseguimos, vai para a mãe de uma das minhas melhores amigas que faleceu recentemente, celebrei o golo com a sua camisola e isto vai para a sua família, com todo o amor.” No auge da sua vida desportiva, foi a primeira coisa que lhe saiu da boca perante um microfone.
Portanto, sim, a grandeza estas espanholas é imensurável. Elas e as mulheres que jogaram futebol neste Mundial não têm de se prestar a convencimentos - há é muitos homens a terem de sair das cavernas e prestarem-se a vê-las jogar.