Natação

David Popovici, o estoico campeão mundial que é uma libelinha

David Popovici, o estoico campeão mundial que é uma libelinha
DeFodi Images

Ficou nove meses sem competir após ser campeão olímpico e prefere ler os filósofos estoicos, em busca da felicidade, do que render-se ao scroll infinito nas redes sociais. O romeno David Popovici venceu o ouro nos 200 metros livres dos Mundiais de natação, em Singapura, e ainda lhe faltam os 100 metros (onde encontrará o peixe-voador, Pan Zhanle), mas apregoa que as medalhas nada mudam no mundo

Nada havia que enganar, os números aquáticos têm repulsa de sugerir falsidades. David Popovici vencera uma meia-final, Luke Hobson ganhara a outra, a decisão dos 200 metros livres haveria de confluir para os únicos homens com guelras no ativo a conseguirem nadar a distância abaixo do minuto e quarenta e quatro segundos. O delgado romeno era campeão olímpico, brutamontes norte-americano o recordista mundial em piscina curta, não na longa destes Mundiais, em Singapura, na arena a reverberar de entusiasmo antes da corrida, uma das mais estimadas pelo público.

Com as sapatilhas ancoradas numa mão surgiu Popovici para uma receção ruidosa a condizer, depois apareceu Hobson, calçado e menos sorridente, um na pista 6, outro na 4 e no meio deles o coreano Hwang Sun-woo, terceiro mais rápido nas ‘meias’ e primeiro a tocar na parede aos 50 metros. Pouco durou essa dianteira, rapidamente a pressa do homem do Nevada, estado desértico e árido dos EUA, deslizou à superfície para ficar na frente, por meio-corpo, durante mais de metade da duração das braçadas. Mas, na virada para a derradeira piscina, o melhor dos finalizadores na água despertou.

Popovici nadou esses 50 metros em quase menos um segundo do que Hobson, ultrapassou-o sem espalhafato, nada de salpicos e águas barafundas, apenas um corpo a parecer um só com a água, mecânico tanto quanto elegante. Os 1:43.53 segundos, a sua melhor marca do ano, deram-lhe o ouro para ser campeão mundial da distância pela segunda vez, após Budapeste, em 2022. E soube-lhe melhor este triunfo por comparação com o olímpico de Paris. “Treinei muito para os Jogos, mas este ano estive mais relaxado e easy going, estou muito orgulhoso de mim”, disse já a seco, enfim sorridente e não com a cara de indiferença que mantivera na piscina.

Questionado sobre o que lhe invadiu a cabeça à entrada dos últimos 50 metros, David Popovici interrompeu-se por um segundo. Matutou o que responder, ponderado como ele é. “Muito auto-pensamento, do género ‘tenho de fazer isto’, a dizer que devo a mim próprio dar o máximo, tentar o meu melhor.” Sucinto na profundidade da sua explicação, o romeno de 20 anos manteve-se fiel à sua postura habitual, a de um homem para lá da sua idade, composto sem laivos de grandeza. 

Sarah Stier

Nas barbas da vitória, com todas as razões e mais algumas para se conceder à efusão, o anti-estrela da natação preferiu a ponderação.

Sem surpresas, porque antes destes Mundiais já lembrava que ninguém falava dos “blues”. Não do ritmo e azuis na tradução estritamente musical, antes da sensação de abandono, da ressaca advinda da visita a um apogeu que se acopla a um atleta quando alcança os objetivos máximos. David Popovici sentiu os “blues pós-Jogos”, falou deles, “são reais”, e nenhuma vergonha sentiu em desabafar como vivalma se dedica a perorar sobre “o quão vazio de sentes após atingires tudo aquilo que sonhaste” enquanto as pessoas preferem falar “da glória, da fama, do dinheiro e do reconhecimento”.

Eloquente no inglês com que se expande, deu primeira raia em 2022, quando bateu o recorde mundial dos 100 metros livres do brasileiro César Cielo, fixado 13 anos antes, prévio à proibição dos fatos de banho de neoprene que cobriam corpos inteiros na era tecnológica da natação. Em Popovici surgiu um rapaz fadado para proezas, um europeu da Roménia, país humilde nas piscinas, e não chinês, norte-americano ou australiano como os costumes banalizaram. 

Em Paris ficou com o ouro nos 200 metros e fugiu da água com cloro, sentiu o vácuo, precisava de “abrandar as coisas”. Esteve nove meses sem competir, confessou à “World Aquatics” ter-se apercebido de que “nadar não é tudo”, eventualmente atentou à entropia sugerida pelos livros que teria na cabeceira: em adolescente já admitia amores por Platão, Epicuro, Séneca ou Marco Aurélio e os seus escritos dedicados ao labor do prazer. “Ajudam-me a encontrar a felicidade. Não a tradicional de risos, lágrimas de alegria e grandes sorrisos, mas a de realização”, professou ao “El País”, há dois anos, quem já apregoava que as prioridades eram “o coração e a cabeça”.

Popovici enfim sorriu em Singapura, as conquistas também importam, lá se agasalhou com a bandeira da Roménia, onde preferiu ficar quando despontou e as universidades norte-americanas de eleição o seduziram com bolsas de estudo, queriam tê-lo a competir por elas, mas ele quis ficar por Budapeste, a pedalar de bicicleta para os treinos, a partilhar piscina com miudagem. David tem presente que nadar “não é uma demonstração de poder” e, “na grande escala das coisas”, ciente está de que “o mundo não vai mudar nem um pouco até se vencer 300 medalhas olímpicas”.

Lintao Zhang

Interessa-lhe as sensações que desperta nas pessoas, “as mensagens” que faz passar - “o que consigo partilhar através do meu trabalho”. Eis um jovem atento ao ponteiro da sua bússola moral, um que prefere ler um livro a deixar-se levar no scroll infinito das redes sociais e explica, calmamente, os benefícios de tais escolhas em entrevistas ao site dos Jogos Olímpicos e a jornais de referência. “Quando os períodos de competição ficam duros, tento ser estoico e não me preocupar com o que não está sob o meu controlo”, resumiu, num desses desabafos, o coletor de recompensas dos livros filosofais.

Porque nadar “é ótimo”, mas “é ainda mais importante usar a natação para praticar o bem”, defende David Popovici, o agora bicampeão mundial dos 200 metros livros que esta semana revisitará a piscina para os 100 metros, distância que lhe devolveu o bronze em Paris e o ouro há três edições desta competição. Aí terá a companhia de Pan Zhanle, o impressionante chinês que pulverizou a distância nos últimos Jogos, afamado como o “peixe-voador” e detentor do recorde do mundo.

Quando as marcas, na erupção de Popovici, o rodearam com a ânsia por parcerias, uma delas perguntou-lhe que animal lhe aprazia para o associar à parafernália desportiva que venderia com o nome do nadador. Fácil teria sido ir ao golfinho, a um tubarão, quiçá à orca ou escolher do rol de peixes existentes. Com a ajuda da namorada, o romeno também aí divergiu: optou pela libelinha. “São criaturas bonitas e delicadas que planam sem esforço na superfície da água, sem nadar, nem estarem completamente em voo”, explicou o gracioso campeão mundial. 

Ele gosta dessa ideia, a de deslizar sem dificuldades aparentes. Que as possamos avistar, não parecem existir.

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