O que tem Neemias? Físico, “mistério”, personalidade e potencial. Muito potencial

Jornalista
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Nos Estados Unidos, tudo pode ser um espectáculo. Até uma cerimónia em que o objetivo é anunciar nomes. Os rapazes cujos nomes podem ser chamados vestem o seu melhor fato, alguns chegam com os pais, outros com amigos e todos esperam pacientemente até ao momento em que o seu nome ressoa naquela sala e eles podem subir ao palco. No seu tempo de adolescente, LeBron James, num impecável fato branco, talvez uns quantos números acima, foi o primeiro a ser chamado.
LeBron foi a 1st pick do draft de 2003 e logo ali foi o rebuliço entre abraços, beijos à mãe e o cerimonial passou-bem ao então comissário da NBA, David Stern. Depois, a foto com o boné dos Cleveland Cavaliers para a posteridade e a imediata entrevista rápida em que o miúdo de Akron, Ohio falava das suas hopes and dreams agora que se tornou, oficialmente, jogador da NBA.
Todos os anos é assim: 60 nomes são chamados, divididos por duas rondas e pelas 30 equipas da maior liga de basquetebol do Mundo. Há confirmações, há surpresas, há escolhas completamente ao lado - e há quem fique de fora. E em 2019 há algo completamente diferente. Pelo menos para nós, portugueses. A 20 de junho, em Nova Iorque, há um concidadão com legítimas hipóteses de ouvir o seu nome ser chamado, com legítimas chances de abraçar a família e amigos, de receber o boné, de dar o passou-bem ao comissário ou subcomissário da NBA.
O nome dele é Neemias Queta, um rapagão de 2,11m que nasceu há 19 anos em Lisboa, mas foi criado no Barreiro, terra de basquetebol, não fosse o Barreirense um dos principais clubes formadores do país.
Foi aos 10 anos que este filho de pais guineenses reparou que, por acaso, a equipa da margem sul do Tejo se treinava ao lado da equipa da sua irmã. Resolveu experimentar e depois de sete anos no Barreirense transferiu-se para o Benfica, onde foi saltitando entre a equipa B e os treinos com a equipa principal.
Mas estes saltos não eram os únicos saltos que Neemias queria dar: no início da temporada passada aceitou um bolsa para estudar e treinar na Universidade de Utah State. E foi assim que o poste saltou o Atlântico, onde rapidamente se tornou na figura maior dos Utah State Aggies, que esta temporada conseguiram pela primeira vez nos últimos oito anos chegar ao torneio final da NCAA, o organismo que regula o desporto universitário norte-americano.
No March Madness, assim é carinhosamente tratado o torneio, Neemias e os Aggies caíram à primeira, mas a boa impressão já tinha sido deixada: o jogador do Barreiro foi considerado o melhor rookie e o melhor defensor da conferência Mountain West, que os Aggies conquistaram.
José Ricardo Rodrigues trabalhou com Neemias no Benfica e antes disso na Seleção Nacional sub-18, em 2017. “Nessa altura já tinha 2,07m e uns impressionantes 2,24m de envergadura. Além disso gostava imenso do jogo e apresentava uma relação com a bola de grande qualidade”, conta o técnico, recordando que todos os elementos da equipa técnica "perceberam logo que tinham em mãos um atleta de elevadíssimo potencial”.
A decisão de Neemias em partir para os Estados Unidos não teve, curiosamente, a aprovação do técnico. Porque os Estados Unidos podem ser a Meca do basquetebol, mas nem sempre o método utilizado nas universidades é o que mais convém a jogadores com passado europeu, onde o treino é mais tático, mais focado nos fundamentos do jogo, e menos no atleticismo.
“Sempre fui contra a ida do Neemias para os EUA, porque sou muito cético relativamente ao trabalho que se realiza nas universidades americanas”. José Ricardo assume que quando Neemias lhe falou dessa possibilidade, alertou-o que poderia não ser uma boa opção. “São muitos os exemplos, demasiados até, de atletas com grande potencial que não vingaram após experiências nos Estados Unidos”.
O certo é que Neemias parece ter quebrado essa barreira. E o seu antigo treinador não poderia estar mais feliz: “Fiquei agradavelmente surpreendido com o sucesso que ele alcançou e fiquei muito feliz por isso ter acontecido. Acho que ele tem muito potencial”.
É mais ou menos comum por esta altura, quando o March Madness acaba e já se começa a sentir o cheirinho do draft. Sucedem-se em catadupa os jogadores universitários que se declaram disponíveis para o draft. Neemias fê-lo a 13 de abril.
“Depois de conversar com a minha família e treinadores, decidi perseguir o meu sonho de jogar na NBA”, escreveu o português nas redes sociais, deixando no entanto em aberto a possibilidade de regressar a Utah State - todos os jogadores que se declaram para o draft podem ainda voltar atrás na decisão até 10 dias antes da cerimónia.
“Potencial” é a palavra-chave quando falamos de Neemias e é esse potencial que tem aguçado a curiosidade das equipas da NBA. O poste português está longe de ser um jogador feito, mas não é todos os dias que aparece um poste ofensivamente forte, na finalização e nos ressaltos, e com grande capacidade de fazer interceções (ou, em bom português, abafos) do outro lado do campo.
Ainda assim, e quando estamos a dois meses do draft, Neemias não surge em muitos dos mock drafts que vão surgindo na imprensa norte-americana ou em sites especializados.
Mock drafts são listas provisórias feitas por especialistas que, seguindo uma série de critérios, tentam fazer a previsão daquilo que será a noite do draft. E, mais coisa, menos coisa, não falham por aí além.
Mas tenhamos calma. Para já, não há razão para alarme: dois dos principais homens da bola de cristal acreditam que não só Neemias será escolhido no draft como poderá até ser chamado ainda na 1.ª ronda, ou seja, entre os 30 primeiros.
“Não veria a ausência do Neemias em algumas das listas como um sinal de que não vai ser escolhido - agora que ele se declarou oficialmente para o draft, imagino que outros especialistas que não eu vão começar a colocá-lo nas suas contas”, diz Jeremy Woo à Tribuna Expresso. Woo é o responsável pelo mock draft da “Sports Illustrated”, que neste momento coloca Neemias como 27.º no draft. “Ele é definitivamente uma promessa legítima. Baseando-me em como está a situação agora mesmo, eu diria que ele será provavelmente escolhido no final da 1.ª ronda ou início de 2.ª ronda. Portanto, é altamente provável que ele seja escolhido, mas há muita coisa que pode acontecer no processo”.
E essa “muita coisa” pode ser uma lesão ou aquilo que Neemias poderá fazer ou não nos treinos com as equipas ou no NBA Combine, uma sessão de treinos e testes que se realiza antes do draft e onde os atletas se podem mostrar aos executivos e treinadores da liga.
A opinião de Jeff Goodman, especialista na matéria na plataforma digital Stadium, não difere muito da de Jeremy Woo. “Acho, por conversas que tenho tido com com vários diretores da NBA, que o Neemias deverá ser escolhido na 2.ª ronda. Há seguramente hipóteses de se intrometer no final da 1.ª ronda, mas teria de fazer um bom NBA Combine e também sair-se bem nos workouts com as equipas”, diz-nos.
Woo acredita que os atributos físicos do poste português - “os seus braços longuíssimos e a mobilidade que tem para a sua altura” - tornam-no num “jogador bastante intrigante” para uma equipa que tenha paciência para apostar no seu desenvolvimento. “Não há muitos jogadores com as ferramentas físicas que ele tem. O que vai chamar mais a atenção das equipas será a sua capacidade de interceptar lançamentos e o facto de ser um poste defensivo”, continua, ressalvando que Neemias terá de continuar a “melhorar o seu jogo ofensivo” e o lançamento.
Já Jeff Goodman olha para a sua “envergadura, atleticismo e habilidade de cavalgar o campo” como características que jogarão a favor do poste. “Ele é duro e adaptou-se com facilidade ao jogo universitário. Joga com muita energia e também me parece muito bom miúdo”, diz o analista que também já passou pela ESPN.
Bom miúdo e trabalhador, o que não é de menor importância num basquetebol tão competitivo como o norte-americano. “O Neemias é um rapaz humilde, muito comprometido com os seus objetivos e consciente do que precisa de fazer para os atingir”, diz também José Ricardo Rodrigues, que recorda um atleta “ambicioso, extremamente coletivo” e recetivo a todas as indicações. “Era muito 'treinável'. Se tiver o enquadramento adequado terá muito sucesso”, vaticina o seu antigo treinador.
Declarar-se disponível para o draft é, muitas vezes, apenas uma forma dos jogadores “testarem as águas” da NBA. Ou seja, durante um determinado período podem perceber se há interesse suficiente para arriscar uma ida ao draft, até porque caso não sejam escolhidos, não há volta a dar: o jogador passa a ser considerado profissional e as portas das universidades ficam fechadas. Só há uma oportunidade de ir ao draft, uma e mais nenhuma, ainda que seja possível ser contratado por uma equipa da NBA depois de não se ser escolhido no draft.
Há portanto ainda possibilidades de Neemias Queta voltar atrás e optar por jogar um novo ano nos Utah State Aggies, opção que é sempre uma lotaria: se correr bem, poderá até levar a que seja escolhido numa posição de maior destaque no draft de 2020 (o que significa mais tempo de jogo e um contrato bem mais lucrativo); se correr mal, seja por má forma ou uma lesão, poderá muito bem acabar o sonho da NBA.
“Dado o nível de interesse geral que as equipas da NBA estão a mostrar pelo Neemias enquanto promessa, eu acho que não é um erro apostar em tornar-se profissional e tentar ser escolhido por uma equipa que tenha um plano para o seu desenvolvimento”, aponta Jeremy Woo. “Ele ainda é um bocadinho verde em termos de ferramentas, mas isso não significa necessariamente que não terá sucesso. Muitas vezes, quando os jogadores optam por continuar na universidade, são muito mais escrutinados. Eu diria que o Neemias tem aquele elemento desconhecido, de mistério, que pode funcionar a seu favor”, continua.
Jeff Goodman lembra que, caso o poste decida voltar aos Aggies, tem de se preparar para que muitos mais olhos estejam em cima de si. “Utah State não esteve exatamente no radar nacional na temporada passada”, sublinha, até porque Mountain West não é das principais conferências do basquetebol universitário. “Por isso, agora haverá muito mais gente atenta à equipa, porque foi muito bem sucedida na última época e, por consequência, vão olhar mais para o Neemias”, diz.
Estes próximo mês será, assim, decisivo para Neemias Queta decidir se o seu futuro próximo passa por continuar em Utah State ou se vai mesmo apostar tudo num draft em que, de acordo com os especialistas, poderá sonhar até com uma chamada ainda na 1.ª ronda. Mas o feito de ser escolhido, seja em que ronda, será desde logo histórico, já que nunca um português foi eleito para jogar na NBA.
O que ninguém quererá ver é uma repetição daquilo que aconteceu em 2007 com João Betinho Gomes, extremo à altura no Barreirense e que durante largos meses foi visto como uma potencial escolha de 2.ª ronda no draft, depois de impressionar na liga portuguesa e num campo de treino para jogadores europeus em Treviso, Itália. Betinho chegou a ser observado pelos Atlanta Hawks e pelos Minnesota Timberwolves e a figurar em alguns mock drafts, embora nunca numa posição tão alta como a que Neemias tem, por exemplo, na “Sports Illustrated”. No final acabou por não ser eleito e assim se esfumou a hipótese de vermos pela primeira vez um português na NBA.
Mas essa hipótese está agora mais perto do que nunca.
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