Os 40 anos de Pau Gasol, que poderia estar a curar a covid-19 se não fosse um dos melhores basquetebolistas europeus da história
Lisa Blumenfeld/Getty
Sonhou ser médico para salvar Magic Johnson e dar cabo de "bactérias e vírus", mas o talento para o basquetebol levou Pau Gasol a uma viagem que lhe trouxe dois títulos da NBA, três títulos europeus, um título mundial e três medalhas olímpicas. Apaixonado por ópera, literatura e dedicado a causas sociais, o catalão chega em breve aos 40 anos sem equipa e em plena pandemia. Mas ainda não vimos tudo de Gasol: ele quer jogar nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021
Se a vida não o tivesse levado para outros empreendimentos mais mediáticos e mais cheios de anéis de campeão da NBA e de medalhas olímpicas, talvez Pau Gasol estivesse por estes dias também nas notícias. Talvez na televisão ou nos jornais espanhóis a explicar que raio de vírus é este, a responder pela 3864.ª vez à pergunta “Mas afinal quando é que vamos ter uma vacina para a covid-19?”.
Porque antes de se tornar num dos melhores jogadores europeus da história da NBA, Gasol, que este sábado comemora 40 anos, queria ser médico. E chegou mesmo a conjugar o primeiro ano na faculdade de medicina com os treinos e jogos do Barcelona, até o basquetebol lhe abocanhar uma fatia de tempo que já não lhe permitia pensar em muito mais do que na bola laranja saltitante.
E não um médico qualquer. Gasol queria ser um homem da investigação, dos laboratórios. Como revelou numa reportagem da ESPN, que em 2010 acompanhou o gigante catalão no dia em que, por pura alta recreação e curiosidade, assistiu a uma operação à coluna de uma jovem de 13 anos num hospital em Los Angeles, Gasol sabia que caso o basquetebol não tivesse vencido a luta entre as duas paixões, ele teria acabado a trabalhar “com doenças, bactérias, diferentes vírus - e encontrar curas”. Como o basquetebol ganhou, e bem, hoje Pau Gasol não está num laboratório a tentar bater o novo coronavírus.
Isto, parecendo que não, está tudo ligado ao basquetebol.
Apesar de desde cedo se falar de hospitais em casa dos Gasol - a mãe era médica e o pai enfermeiro -, foi uma inesperada notícia que levou o mais velho dos três filhos do casal a decidir que queria ser médico. Pau tinha apenas 11 anos, o dia era 8 de novembro de 1991. No recreio da escola de Sant Boi de Llobregat, subúrbio barcelonês onde cresceu, o miúdo digeria a notícia que tinha acabado de ouvir numa aula: horas antes, do outro lado do oceano, Magic Johnson anunciara que era VIH positivo. E isso, em 1991, era quase uma sentença de morte.
“Pensei, ‘ele vai morrer’”, contou à ESPN nesse agosto de 2010, acabadinho de ganhar o segundo título de campeão da NBA com os Los Angeles Lakers. E foi com todo o peso que tem a iminência de um dos nossos heróis desaparecer que Pau Gasol decidiu, ali, aos 11 anos, que queria encontrar a cura para a SIDA e salvar Magic.
Aos 40 anos, Pau Gasol muito provavelmente já não voltará para a faculdade de medicina. Talvez não vá salvar vidas, mas a história terá um lugar para si, um lugar bem alto (se não o mais alto) na lista dos melhores europeus de sempre da NBA, uma história que ainda não acabou mas que está, de momento, num impasse: entre lesões e uma pandemia, o espanhol não joga há mais de um ano e está sem equipa, depois de rescindir contrato com os Portland Trail Blazers, pelos quais o seu corpo nem sequer o deixou estrear-se.
Mas Pau Gasol não está pronto para deixar o basquetebol sem uma despedida à sua medida. Já durante a pandemia, numa videoconferência em que respondeu a perguntas de vários estudantes espanhóis, assumiu o objetivo de estar nos Jogos Olímpicos de Tóquio no próximo ano (terá 41 anos então), para tentar mais uma medalha, a quarta, depois das pratas em Pequim’2008 e Londres’2012 e do bronze do Rio’2016.
UM INTELECTUAL NA NBA
Para nós, portugueses, a primeira visão daquele gigante espanhol, magrinho e ainda de cara limpa de barba, terá acontecido em 1999, durante o Mundial de juniores que aconteceu no nosso país e em que despontou uma portentosa geração de jogadores espanhóis, que conseguiu, num Pavilhão Atlântico cheio, bater o Estados Unidos para conquistar então o primeiro grande título internacional para o país.
Nessa equipa, para lá de Gasol, estavam lá outros futuros jogadores da NBA: Juan Carlos Navarro e Raúl Lopez. E eram eles as grandes estrelas daquele conjunto, não Pau Gasol, que nem sequer era titular depois de uma primeira temporada sem grandes oportunidades na equipa sénior do Barcelona.
Porque Gasol era então, com 19 anos, mais do que um atleta. Para lá dos estudos de medicina, em adolescente Gasol já tocava peças de Tchaikovsky ao piano, tal como contou ao jornalista norte-americano Lee Jenkins num longo perfil feito pela ESPN em 2010, quando vivia o auge da sua carreira na NBA.
Com o título de campeão do Mundo de juniores nas mãos, Gasol percebeu então que a sua carreira só evoluiria se deixasse a faculdade para se dedicar por inteiro ao basquetebol. Ainda assim, na época 1999/2000 continuou a jogar pouco. Só na temporada seguinte explodiu: com dezenas de olheiros da NBA nas bancadas, foi o melhor jogador do torneio final da Taça do Rei de Espanha. No draft desse ano, Pau Gasol foi o 3.º a ser chamado - e nunca um europeu tinha sido escolhido tão cedo no draft da NBA. Ao lado de David Stern, então comissário da liga, Gasol posou do alto dos seus 2,13m com um boné dos Atlanta Hawks, mas seria trocado para os Vancouver Grizzlies, equipa que estava então em mudanças para Memphis. E para Memphis se mudou toda a família Gasol, inclusive os irmãos mais novos Marc e Adriá.
A sua demorada afirmação como sénior no Barcelona deu a Pau as ferramentas para chegar à NBA aos 21 anos e impor-se rapidamente: a liga norte-americana de basquetebol não estava habituada a gigantes com tantos fundamentos, técnica e competência. O espanhol tornou no primeiro europeu a vencer o prémio de rookie do ano da NBA e tornou os Grizzlies numa equipa de playoffs.
Em 2008, os Lakers viram em Gasol a peça que faltava para voltar aos anéis. Sem Shaquille O’Neal, ao lado de quem tinha ganho os títulos em 2000, 2001 e 2002, Kobe Bryant era um homem sozinho. Gasol, que deixou os Grizzlies como recordista do franchise em pontos, ressaltos, desarmes de lançamento, número total de jogos, entre outros, tornou-se no melhor sidekick que Bryant poderia imaginar. Logo em 2008, os Lakers voltaram às finais da NBA, perdendo em sete jogos com os Celtics. Nas duas temporadas seguintes, o título ficou mesmo em Los Angeles.
Nos Estados Unidos, Pau Gasol não só não perdeu a aura de jogador diferente, como aproveitou tudo o que o país lhe podia dar. Continuou a estudar piano e aprendeu italiano e francês sozinho. Não é estranho vê-lo com romances históricos debaixo do braço e nos seus tempos enquanto Laker, conta a ESPN, discutia apaixonadamente Hemingway com Phil Jackson, o treinador que tornou Jordan e Kobe campeões.
Em L.A., era presença assídua nos teatros e óperas da cidade e quando deixou os Lakers, em 2014, escolheu a proposta dos Chicago Bulls em detrimento dos Oklahoma City Thunder também pela vida cultural da “Windy City”. Ao “Chicago Tribune”, disse em 2015 que a ópera lhe trazia o “balanço” que a agitada vida como basquetebolista da NBA lhe exigia. As suas obras favoritas? “Tosca” e “La Boheme” de Pucini e “La Traviata” de Verdi.
Sem poder tornar-se médico, Gasol arranjou outras formas de fazer o bem pelos outros. É embaixador da Unicef desde 2003, com diversas viagens a África pelo meio. Em Memphis, era visita frequente no hospital pediátrico local, onde a mãe, Marisa, fazia voluntariado. A Fundação Gasol, que apadrinha em conjunto com o irmão Marc, também ele campeão da NBA, no ano passado, com os Toronto Raptors, dedica-se à promoção de um estilo de vida saudável para as crianças.
Vice-presidente da Associação de Jogadores da NBA entre 2017 e 2020, Gasol defende ainda publicamente a igualdade e diversidade no desporto: em 2018, escreveu um texto para a plataforma “The Players’ Tribune” em que defendia que Becky Hammon, assistente de Gregg Popovich nos San Antonio Spurs, onde então jogava, deveria rapidamente ser opção como treinadora principal de uma equipa da NBA.
A INCERTEZA
A esperança de chegar saudável e em condições de ajudar a seleção espanhola nos Jogos Olímpicos de Tóquio, daqui a um ano, tornaria perfeita a conclusão de uma carreira em que Pau Gasol nunca virou as costas a Espanha. É já com o poste como figura de proa que a seleção espanhola se torna pela primeira vez campeã mundial em 2006, no Japão, com Gasol como melhor jogador do torneio.
No currículo com a seleção estão ainda três títulos de campeão da Europa mais duas presenças na final. Em Jogos Olímpicos, o sonho da medalha de ouro só foi travado por duas vezes pelos Estados Unidos e sempre em finais muito disputadas: 118-107 em Pequim’2008 e 107-100 em Londres’2012. No Rio de Janeiro, Espanha caiu nas meias-finais mas ainda chegou à medalha de bronze.
A carreira de Gasol parece, no entanto, estar num impasse, para o qual nada ajudou a pandemia da covid-19. Os últimos dois anos têm sido marcados por problemas físicos e, consequentemente, muita inconstância. Depois de deixar os San Antonio Spurs em março de 2019, fez apenas três jogos pelos Milwaukee Bucks antes de se lesionar no tornozelo esquerdo. Em julho assinou pelos Blazers, mas a lesão não lhe permitiu fazer qualquer jogo pelos Blazers. Agora está sem equipa, mas não pensa em retirar-se já.
Num podcast do portal ClutchPoints no mês passado, Gasol assumiu que terminar a carreira nos LA Lakers “seria fantástico”, 10 anos depois do último título da equipa. Com LeBron James e Anthony Davis como figuras principais, os Lakers voltam a ser candidatos ao título - são neste momento primeiros na Conferência Oeste, já com um lugar garantido nos playoffs.
E num ano em que os Lakers e todos nós perdemos Kobe Bryant, final mais emocional para Pau na NBA não haveria.
Nota: Ao contrário do indicado no texto, Gasol completa 40 anos a 6 de julho e não 6 de junho.