A 3 de Janeiro de 2019, depois de dois autogolos em Portimão, Rui Vitória era despedido do cargo de treinador da equipa principal do Sport Lisboa e Benfica. Deixava a equipa num modesto quarto lugar, a sete pontos do primeiro, já depois de mais uma fraca prestação europeia. Para ocupar o lugar, a direcção encarnada optou por Bruno Lage, até então o treinador da equipa B.
A opção era provisória, e servia essencialmente para que a segunda metade da época fosse o menos penosa possível. Em simultâneo, permitia à direcção ganhar tempo para pensar numa solução duradoura para o cargo. A época estava oficialmente dada como perdida, e um treinador da casa, sem grandes expectativas a respeito do prolongamento do vínculo para a próxima época, era uma solução prática e económica. No início de 2019, a meio da época desportiva, ninguém imaginava que o Benfica ainda pudesse ser campeão, e era já no futuro que se pensava. A decisão de promover Bruno Lage a treinador da equipa principal mostra que, às vezes, as boas decisões são fruto do acaso.
Não creio que a decisão tenha sido boa por ter permitido ao Benfica ser campeão. Justificar boas decisões com base nas consequências das mesmas, sobretudo em desporto, não é particularmente interessante. Também não creio que Bruno Lage seja a melhor opção para o cargo por ser um treinador mais competente do que outros colegas de profissão, do ponto de vista táctico. Até agora, não se mostrou particularmente inovador, e não vejo que a qualidade do futebol do Benfica tenha mudado muito desde o início da época.
Houve mudanças, claro, mas não me parece que tacticamente se tenha concretizado qualquer revolução. Em termos colectivos, a equipa continua a revelar problemas grandes ao nível da criatividade e da capacidade de gerir o jogo com bola, assim como continua a defender com os sectores demasiado afastados, por exemplo. Os jogadores continuam amarrados a tarefas muito específicas (para as quais talvez se disponibilizem agora de outro modo, é certo) e continuam incapazes de se associar entre eles de modo eficiente. Os méritos de Bruno Lage são outros, e têm muito a ver com as razões pelas quais me parecia desde o primeiro minuto a melhor aposta possível para treinar o Benfica naquela altura.
Em poucas palavras, era um treinador da casa, que conhecia bem o que se fazia nos escalões de formação e que tinha uma ideia, por mais vaga que fosse, da filosofia do clube. Ainda que não se possa dizer que o Benfica seja um daqueles clubes cuja filosofia é facilmente identificável, e ainda que, nos últimos anos, não se tenha apostado muito na prata da casa, parecia-me óbvio que o treinador adequado era alguém que soubesse de que modo a equipa principal poderia começar finalmente a integrar os talentos produzidos na academia do clube. Bruno Lage era a pessoa certa, não obstante a maior ou menor competência técnica, porque era um funcionário da casa.
Esta explicação pode parecer redutora, mas creio que é justa. Os clubes portugueses não podem continuar a desprezar o talento que se produz internamente, e o próprio Benfica deve olhar para a última década com alguma apreensão. Se pensarmos no talento que foi desperdiçado nos últimos anos em Portugal, e na quantidade de jogadores que acabaram por vingar lá fora e mal foram utilizados nas equipas principais dos clubes onde se formaram, temos obrigatoriamente de corar de vergonha.
Se há coisa que Bruno Lage conseguiu mostrar este ano, mesmo partindo atrás dos rivais, é que é possível ser campeão em Portugal apostando em jovens jogadores. Claro que esta geração é muito boa, e que João Félix faz muita diferença... Mas parece-me óbvio que a inclusão de jovens jogadores, se feita com conta, peso e medida, não prejudica em nada o desempenho colectivo de uma equipa. Desde que se saiba como integrá-los, que não se espere que eles resolvam todos os problemas da equipa e que se lhes ofereça o contexto certo para começarem a acreditar nas suas qualidades, os jovens jogadores crescerão por si mesmos.
Em Portugal, só se aposta em jovens quando os próprios conseguem mostrar a toda a gente que são a melhor opção para o lugar. Ou seja, só se aposta neles quando já é evidente para todos que tem de se apostar neles. Ninguém faz apostas a médio-longo prazo, e no entanto era isso que devia ser feito sistematicamente. Nenhum jovem chega à equipa principal preparado para ser jogador da equipa principal. É preciso prepará-lo para que o seja, e isso só se consegue tornando-lhe cada vez mais cómodo o papel dentro da equipa.
Parece ser isso que Bruno Lage procurou fazer com jogadores como Ferro, Florentino, Gedson e Jota (João Félix é um caso à parte, porque foi titular indiscutível desde o primeiro momento), e tê-lo feito não o impediu de recuperar uma desvantagem assinalável e muito menos de se sagrar campeão.
No início do ano civil de 2019, poucos acreditavam que o Benfica pudesse sequer voltar à discussão do título. Mais do que a desvantagem pontual, o futebol praticado em campo não convencia ninguém. A chegada de Bruno Lage ao banco teve um efeito imediato: a libertação mental da equipa. Em pouco tempo, percebeu-se que os mesmos jogadores que antes pareciam andar perdidos sabiam agora exactamente o que fazer em cada momento de jogo.
É possível que as alterações tácticas de Bruno Lage, apesar de pouco significativas, tenham permitido aos jogadores, de um modo geral, um maior conforto dentro de campo, assim como é possível que se tenham libertado por terem passado a compreender melhor as tarefas que tinham para cumprir. Não é no entanto de desconsiderar que a diferença se justifique apenas por uma questão de expectativas. Creio, aliás, que o caso do Benfica é semelhante ao do Manchester United esta temporada e a tantos outros casos, em tantas outras temporadas. Depois de um fase particularmente deprimente, que culmina com o despedimento do treinador e o reconhecimento de que a época está perdida, é normal que as expectativas dos jogadores diminuam. Sem a pressão de se mostrarem à altura das expectativas, libertam-se e parecem jogar mais do que jogavam até então. Até que os bons desempenhos tornem a elevar as expectativas, a mesma equipa que antes parecia incapaz de contrariar quaisquer dificuldades encara os jogos com muito mais confiança.
Creio que o Benfica de Bruno Lage se aproximou dos rivais, reentrando na corrida para o título, não só porque, nessa fase de menores expectativas, recuperou a confiança que tinha perdido, mas também porque, nessa mesma fase, beneficiou ainda de alguns deslizes dos adversários.
Estou, por isso, em crer que as questões puramente tácticas tiveram pouquíssima relevância na caminhada encarnada. Isto é, há pequenos aspectos a considerar, e que julgo que foram importantes, mas não creio que o sucesso de Bruno Lage nesta segunda metade de época se explique muito em termos tácticos.
A principal diferença para o Benfica de Rui Vitória, nesse capítulo, é o comportamento da dupla de médios, que raramente entram dentro do bloco adversário, servindo por isso predominantemente para assegurar coberturas e facilitar a circulação exterior. Foi sobretudo por isso que Pizzi deixou de ser opção para o miolo do terreno.
Como aquilo que pretendia para o seu meio-campo não era bem o que o seu antecessor pretendia, Bruno Lage foi de certo modo forçado a reabilitar alguns jogadores. Basta pensarmos em Gabriel e Samaris, que foram durante boa parte desta segunda metade da época a dupla de médios mais comum, ou ainda em Taarabt, que não estaria nas cogitações de ninguém. À excepção dessas novas dinâmicas a meio-campo, o Benfica de Bruno Lage não é no entanto muito diferente do que era.
É verdade que a presença de João Félix no meio, a ocupar zonas entre linhas, torna o colectivo menos dependente de cruzamentos para a área e de outros recursos igualmente estéreis, mas quando a ligação ao jovem prodígio de 19 anos não é eficiente, lá voltam os velhos vícios de esticar na linha, de cruzar de longe e de procurar a profundidade a toda a hora. A falta de critério e a desinspiração colectiva mantêm-se idênticas ao que eram.
Como referido anteriormente, os principais méritos de Bruno Lage foram ao nível da gestão do grupo de trabalho. A reestruturação do plantel é aliás inegável.
Além de ter trazido para a equipa principal alguns jovens de cujo potencial há muito se falava mas nos quais ainda não se tinha apostado devidamente, recuperou jogadores com os quais Rui Vitória não contava, sendo que alguns deles têm sido muito importantes, e parece estar a conseguir tirar o melhor da generalidade dos atletas ao seu dispor. Há que ver, porém, que nem tudo foram rosas, mesmo no que diz respeito à gestão do grupo.
A Zivkovic, por exemplo, não foi dada uma real oportunidade. Claro que quem trabalha com o jogador é que sabe se ele lhe pode dar o que pretende, mas é pelo menos estranho que um jogador tão promissor como o sérvio não mereça mais do que uns minutos aqui e ali. E não é o único. É verdade que Krovinovic esteve muito tempo parado, que não readquiriu o ritmo competitivo que tinha antes da lesão e que, nos poucos minutos que teve, não conseguiu oferecer o que se sabia que podia oferecer, mas a sua pouca utilização também merece reflexão.
Os dois casos servem aliás para explicar a pouca criatividade que se regista no futebol encarnado. Bruno Lage não confia neles não porque eles não se esforcem o suficiente, mas porque o tipo de coisas que podem oferecer não lhe interessa muito. Nesse aspecto, não pensa de maneira diferente de Rui Vitória.
O seu Benfica não é muito diferente do que era antes, e é precisamente por não sê-lo que há pouco espaço para jogadores mais imaginativos como Zivkovic. A menos que fosse capaz de oferecer outras coisas, o futebol do sérvio não se adequa ao futebol idealizado por Bruno Lage.
O Benfica é campeão, e Bruno Lage está evidentemente de parabéns. Conseguiu recuperar os muitos pontos de atraso que tinha, e isso é assinalável por si só. Mas há que distinguir aquilo que fez bem, e que merece todos os aplausos, daquilo que não fez tão bem, não obstante o título de campeão nacional averbado.
O futebol praticado está ainda muito longe da perfeição, e seria desonesto afirmar que, apesar do troféu com que conclui a época, não teve em muitas ocasiões a estrelinha de campeão do seu lado.
Sem bola, a equipa defende mal, concedendo a iniciativa ao adversário mais vezes do que seria desejável, afundando-se em demasia e não sendo capaz de manter os sectores constantemente próximos. E, com bola, precipita-se ainda muitas vezes. Essa precipitação leva a que não consiga gerir o ritmo das partidas e a que seja particularmente ineficaz na hora de desposicionar adversários que se fecham melhor lá atrás.
O modelo de jogo de Bruno Lage não contempla a criatividade, pelo que a forma como o Benfica se propõe atacar é colectivamente pobre. É verdade que, dada a qualidade individual que existe em quase todas as posições, muitas vezes isso nem sequer chega a ser um problema. E, para todos os efeitos, foi o suficiente para ser campeão nacional. Mas não era muito melhor se se jogasse um bocadinho mais à bola? Se há lição que aprendemos todos nos últimos anos é que não é dos campeões que preenchem apenas os requisitos mínimos que temos mais saudades.