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2 de abril de 1931: uma adolescente lança e nem Babe Ruth nem Lou Gehrig acertam na bola de beisebol

Babe Ruth, à esquerda e ao lado de Lou Gehrig, dois dos melhores batedores de sempre da história do beisebol, a observarem Jackie Mitchell a lançar.
Babe Ruth, à esquerda e ao lado de Lou Gehrig, dois dos melhores batedores de sempre da história do beisebol, a observarem Jackie Mitchell a lançar.
Transcendental Graphics

Jackie Mitchell tinha 17 anos quando se juntou aos Chattanooga Lookouts, equipa de beisebol do Tennessee que fez um amigável contra os gigantes New York Yankees, no qual tirou duas lendas vivas de jogo, que não conseguiram acertar nas bolas que lançava. A façanha chocou muito boa gente, numa época em que era mais do que incomum ver mulheres a praticarem modalidades associadas quase exclusivamente a homens. Mas ainda existe a dúvida se tudo não terá sido encenado

Tentando, na medida do possível, simplificar um jogo de beisebol sem danos, há sempre o momento em que alguém de uma luva só, bola na mão e, geralmente, boné na cabeça, avança para um pequeno amontoado de terra. De lá executa um mimetismo de gestos para lançar a bola de 140 e tal gramas para um jogador da mesma equipa a agarrar, a 18.39 metros dali.

Problema: mesmo à frente deste, está um tipo com um taco na mão.

Esse taco, feito de madeira ou metal, é-lhe útil para bater na bola e impedi-la de cumprir essa viagem, atirando-a para longe e desencadeando uma série de outras regras. Se a bola é batida para fora de campo dá-se o home run, o mais reconhecível dos acontecimentos do beisebol por tantas vezes já ter sido ficcionado em cinema ou televisão. Com o mínimo de permeabilidade ao que sai de Hollywood, talvez já tenha ouvido falar de Babe Ruth ou Lou Gehrig.

O primeiro acabou a carreira com 714 home runs, o segundo chegou aos 493. Coincidiram nos New York Yankees durante 14 anos (1920-34), acertando em tantas bolas que, juntos, ganharam quatro World Series - nome a que os americanos dão ao título de campeão - e vincaram a cada tacada, a cada bola acertada, o estatuto de quase deuses do beisebol. Chamavam “Murderer’s Row” - Corredor dos Assassinos - às equipas dos Yankees que ambos integraram nesses tempo.

No período de treinos primaveril de 1931, antes do arranque da temporada, os Yankees foram convidados a irem ao estado do Tennessee pelo presidente dos Chattanooga Lookouts, que era um homem especial. Joe Engel era perseguido por ideias rocambolescas para angariar atenção. Um dia, trocou o passe de um jogador da equipa por um peru, que foi confeccionado para ser servido a jornalistas.

E, na semana anterior ao jogo particular com os temíveis ganhadores de Nova Iorque, deu seguimento a uma outra ideia - contratar uma mulher.

George Rinhart/Getty

A boa-nova foi supersónica a pular de boca para ouvido.

Jackie Mitchell tinha 17 anos e, antes de tudo mais, era uma mulher a intrometer-se num mundo de homens, onde a barreira invisível da misoginia ainda tinha a vivacidade de início de século. “As curvas não vão estar todas na bola”, leu-se num jornal, recorda a revista da “Smithsonian”, a cadeia de museus gerida pelo governo dos EUA. “Naturalmente, levava um pouco mais tempo a lançar a bola do que um homem, porque tinha de colocar pó no nariz e aplicar o baton”, é o que consta na legenda de uma fotografia da época (em cima), propriedade da Getty Images.

Escritas à priori, as frases pecaram, também, por se precipitarem. Chegou o jogo e Jackie foi a sua lançadora posta no monte. À espera, de taco, estava Babe Ruth. Deixou passar a primeira bola, alegando-a inválida. Teve o que queria. Não acertou na segunda, tão pouco na terceira. Parou e refilou, pediu ao árbitro para verificar a bola, estava em crer que algo de errado deveria ter. Também falharia a quarta e última bola, que o ‘eliminou’. Três strikes, mini-vitória para Jackie Mitchell.

A rapariga 17 anos acabara de se livrar de uma lenda. Seguiu-se outra, Lou Gehrig, que teria menos tempo de vida: balançou o taco com intenção, nunca acertou. Umas quatro mil pessoas estariam a assistir e vibraram com a façanha, não com o resultado, que ficaria 14-4 para os Yankees. “Miúda Lançadora Varre Ruth e Gehrig” titulava o “New York Times”, no dia seguinte.

Jackie Mitchell foi somente a segunda mulher a assinar um contrato com uma equipa profissional masculina, que não duraria. Após o jogo, o comissário americano de beisebol anulou-lhe o vínculo e aqui se começa a adensar o nevoeiro e a escorregar na lama da história. Não há prova escrita da decisão, tão pouco das frases que se atribuíram a uma alegada negação de Babe Ruth à hipótese de as mulheres entrarem no beisebol - “São demasiado delicadas, morreriam se jogassem todos os dias”.

Depois, o presidente dos Chattanooga Lookouts era um reputado coração mole por manobras de publicidade, dizendo-se que terá contratado Mitchell na semana anterior ao jogo como um atalho eficaz para atrair atenção. O próprio jornalista do “New York Times” escreveu que Babe Ruth “interpretou o seu papel muito habilmente”, sugerindo a encenação do feito no jogo que uma chuvada obrigou a adiar por 24 horas. Originalmente, estava agendado para o dia das mentiras.

Jackie Mitchell morreria em 1987. Na última declaração que lhe é atribuída, defendeu a veracidade da história: “Porquê? Porque eles estavam a tentar [acertar na bola]. Melhores batedores do que eles não conseguiram bater contra mim, porque haveriam eles de conseguir?”

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