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20 de abril de 2018: O adeus de Wenger, que ganhou muito, mas talvez pudesse ter ganho mais

20 de abril de 2018: O adeus de Wenger, que ganhou muito, mas talvez pudesse ter ganho mais
Stuart MacFarlane/Getty
Chegou o fim da linha para Arsène Wenger, que deixa o Arsenal aos 68 anos, com três campeonatos, sete Taças de Inglaterra e sete Supertaças. Parece pouco (e talvez seja), mas o efeito do técnico gaulês nos gunners e no próprio futebol inglês mede-se muito para lá do currículo. Ele aterrou e foi a revolução: nos comportamentos, na forma de jogar, naquilo que foi a evolução de um campeonato que se tornou num produto global, uma evolução que acabou por vitimar o próprio seu mestre. Wenger não vai sair pela porta pequena, mas tão-pouco sai em ombros. Este texto foi originalmente publicado a 20 de abril de 2018

A histórias das eras é um de tal forma emaranhado novelo de coincidências, mitos, contos e destinos cruzados que às tantas fica difícil perceber onde tudo começou e onde tudo vai acabar.

As pontas, portanto.

Mas se puxarmos os fios, podemos descobrir algumas dessas lendas. Como aquela que nos diz que o FC Porto poderá ter a sua quota parte de culpa naquela que é, na atualidade, a mais larga série de temporadas de um treinador à frente do mesmo clube europeu, série essa que vai acabar de forma mais ou menos surpreendente no final da época: esta sexta-feira, o Arsenal anunciou o adeus de Arsène Wenger, que vai deixar o comando técnico da equipa do norte de Londres 22 anos depois de ser apresentado num misto de desconfiança e incredulidade.

Mas como assim, porquê o FC Porto no meio de todo este novelo? É que a primeira escolha da direção do Arsenal era um senhor chamado Bobby Robson. Mas nesse ano de 1996, o treinador britânico era património não alienável para Pinto da Costa, que não permitiu o regresso de Robson a casa (não conseguiria travar a saída do já falecido técnico para o Barcelona, algumas semanas depois).

Sem Robson, o vice-presidente do clube, David Dein lembrou-se de um francês alto, magro, de óculos, que lhe havia deixado uma belíssima impressão durante um jantar uns anos antes. Nessa noite de 1989, Arsène Wenger era ainda treinador do Mónaco e durante um jogo de charadas desatou a representar a peça “Sonho de uma noite de verão”, de William Shakespeare, em frente a um grupo de perfeitos desconhecidos.

“Pensei: ‘Este tipo é inteligente, poliglota, eloquente e ainda por cima é muito boa companhia’”, disse Dein numa entrevista ao “Times”, por altura do 20.º aniversário de Wenger à frente do Arsenal. “Mal sabia que aquele jantar ia mudar a vida do Arsenal e até do futebol inglês”.

Mantiveram contacto, Wenger foi entretanto treinar para o Japão, mas sete anos depois daquela representação - e qual golpe de teatro - o francês ganhou o lugar num dos históricos da Premier League, então na ressaca de uma série de campeonatos falhados, depois dos títulos de 1988/89 e 1990/91.

A partir daí, e talvez hoje muitos se esqueçam, foi a revolução: a saída do futebol inglês da idade média para uns tempos modernos, mais luminosos, decisivos para a transformação de uma liga fechada em si própria num fenómeno global.

Só que a evolução não pára e no final desta época, uma época que só será salva com uma vitória na Liga Europa, Wenger sairá vítima da sua própria revolução, vítima de um projeto que começou a gripar quando começaram a chegar os Mourinhos, os Guardiolas, esses que talvez nunca tivessem posto os pés em Inglaterra se uns anos antes Wenger não tivesse maravilhado David Dein com aquela atuação shakespeariana.

Muito antes deles, Wenger chegou a Inglaterra numa época em que as notas já começavam a correr nos cofres de uma então ainda jovem Premier League. Mas se havia dinheiro, faltava a estrutura. Num plantel cheio de homens duros como Martin Keown, Lee Dixon, Nigel Winterburn, Ray Parlour e que tinha como líder do balneário Tony Adams, na altura um alcoólico a tentar recuperar-se, Arsène proibiu as dezenas de pints que rodavam após o final de cada jogo. Contratou médicos, dentistas e novos preparadores físicos. Trouxe uma equipa de nutricionistas. Trocou a junk food por pratos de massa no menu pré-jogo. Foi ao pormenor de controlar a temperatura no autocarro da equipa, onde os chocolates passaram a ser item proibido - a estranheza e o controlo foi tal que ganhou o cognome de “Inspector Clouseau”.

Em suma, Arsène tornou aquele grupo num grupo de profissionais.

Pelo caminho, Wenger também encheu o clube de talento. Ainda nem sequer era oficialmente treinador do Arsenal e já tinha ordenado a contratação de um médio defensivo que conhecia dos tempos de França. Um tal de Patrick Vieira, que tinha falhado em Itália e que se tornaria no patrão do meio-campo gunner nos anos seguintes. A seguir chegou Nicolas Anelka. No ano seguinte, Marc Overmars e Emmanuel Petit. Dennis Bergkamp já lá estava. Depois de um 3.º lugar na época de estreia, à segunda temporada Wenger levou o Arsenal ao título inglês e à vitória na Taça de Inglaterra.

Voltaria a ser campeão em 2001/02 e 2003/04, nesta última época sem qualquer derrota - conhecida como os “Invencibles”, a equipa onde já brilhavam Robert Pires, Ashley Cole, Frederik Ljungberg e principalmente Thierry Henry, igualaria um feito com 115 anos, quando o Preston North End terminou o campeonato também invicto.

José Mourinho, com quem Wenger viria a ter épicos choques de personalidade, chegaria a Inglaterra no ano seguinte e o Arsenal nunca mais seria campeão. De 2005 a 2010 viveria uma seca de títulos e a construção do novo estádio obrigou a uma mudança de estratégia do clube que, sem dinheiro para rivalizar com os milhões que começaram a inundar o Chelsea e depois o Manchester City, apostou tudo na prospecção e contratação de jovens talentos. Uma estratégia ingrata, na medida em que muitos desses talentos criados e aperfeiçoados por Wenger acabariam a alimentar a máquina dos gigantes europeus, estatuto ao qual os gunners falharam aceder, depois da derrota na final da Champions League de 2006 frente ao Barcelona.

Nas últimas temporadas, o Arsenal perdeu definitivamente o comboio, esse comboio dos gigantes. Apesar dos milhões gastos em jogadores de classe mundial como Mesut Ozil ou Alexis Sanchez, o título nunca mais chegou. E depois de um 5.º lugar na época passada e de nesta não conseguir ser melhor que 6.º, o fim da infinita paciência dos adeptos da equipa fazia adivinhar um fim da linha que, não sendo penoso, tão-pouco será dourado para o treinador hoje com 68 anos.

E assim se encontrou a ponta do novelo. Porque mesmo que quase não se consiga escrever Arsenal sem escrever Arsène, todas as eras têm, irremediavelmente, um final.

Para a história ficam os três campeonatos, sete Taças de Inglaterra e sete Supertaças. São muitos troféus, mas talvez pudessem ser mais, 22 anos é muito tempo. Mas fica mais: fica uma ideia de jogo mais bela, onde pela primeira vez a técnica veio dar as mãos à intensidade tipicamente britânica. E fica uma bitola. Uma bitola que Wenger colocou lá em cima e obrigou, por exemplo, Alex Ferguson a atualizar-se, quase todos os clubes da Premier League a olhar mais além, para não ficarem eles próprios presos na idade média do futebol. Haverá sempre um antes e um depois de Arsène Wenger no Arsenal, na Premier League.

Na hora da despedida, Wenger pediu a todos que amam o Arsenal para “continuarem a defender os valores do clube”

“Depois de muita reflexão e de discussões com o clube, penso que o final da época é a altura certa para sair. Estou grato por ter tido a oportunidade de servir o clube ao longo destes anos que foram memoráveis. Treinei o clube com o maior empenho e integridade. Quero agradecer ao staff, aos jogadores, diretores e adeptos, que tornam este clube tão especial. E peço aos nossos fãs para que continuem a acompanhar a equipa para terminarmos a época em grande.O meu amor e apoio para sempre”, escreveu.

Au revoir, Monsieur Wenger.

O MELHOR ONZE DE ARSÈNE WENGER NOS 22 ANOS DE ARSENAL

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