Antes de vos falar no jogo da minha vida, que já perceberam qual foi, deixem-me evocar outras partidas que também o poderiam ter sido mas das quais só recordo, talvez idealizados, um ou dois momentos chave.
No campo das alegrias lembro a final da Taça de Portugal de 2004 entre o FC Porto de Mourinho que tinha ganho tudo o que havia para ganhar e o Benfica de Camacho. Empate aos 58 minutos por Fyssas que até teve tempo de trocar de pé antes de rematar e decisão final, já no prolongamento, por Simão Sabrosa que fez de cabeça o que os passadores do voleibol costumam fazer com as duas mãos. Estava a ver o jogo no Gorjão, perto da Chamusca e, no regresso a Lisboa pela mais secundária das estradas, havia gente aos saltos no meio da rua, a celebrar, em Marianos, Parreira, Paço dos Negros e outras aldeias ignoradas pelo comum dos mortais.
Ainda pela televisão, três outros momentos de felicidade. Um foi o Benfica-Sporting do ano seguinte, decidido num lance de bailado aéreo entre Luisão, Ricardo e o esférico. Estava com mais umas dezenas de pessoas a ver o jogo no Grande Hotel do Luso. Daí em diante foram só gritos e cantigas. O ambiente era magnífico, como se pode atestar pela piada de um sportinguista ao meu lado, a quem não faltava sentido de humor: “Se vocês jogassem como cantam já estavam a ganhar por 3-0”…
Os outros dois foram na Casa do Benfica em Matosinhos da qual sou efémero mas fiel frequentador. Em 2006, quando Brian Ruiz aos 76 minutos, de baliza aberta, atira por cima do poste, perdendo o golo que provavelmente teria dado o título ao Sporting. Imediatamente depois, astronautas da Estação Espacial Internacional deram conta da passagem de um meteorito esférico em trajectória ascendente.
E o ano passado, em março, quando o Benfica teve que segurar o 2-1 no Dragão, reduzido a dez durante 20 minutos, após a expulsão de Gabriel, defendendo a sua baliza que nem os Cavaleiros de Malta contra as hordas otomanas em 1565.
Emoções, estas ao vivo, por volta de 1985 no velho Estádio da Luz, no último jogo que recordo ter visto ao lado do meu pai. Era um Benfica-Sporting no qual bastava o empate para dar o título ao Glorioso. Primeira parte, penálti contra o Sporting e Bento, num acesso de loucura, deixa a baliza deserta e tenta converter. Damas, que era um guarda-redes extraordinário, sacode e, na sequência, alguém do Sporting tenta de longe alvejar a deserta baliza encarnada e não falha por muito. Último minuto do jogo, penálti contra o Benfica, que Jordão tenta converter. Bento estira-se, redime-se e a seguir, já com o árbitro a apitar para o fim da partida, vai atrás do Jordão até ao meio-campo e brinda-o com uma saraivada de manguitos, acompanhada por uma banda sonora, felizmente inaudível do local onde nos encontrávamos.
Tristezas, as óbvias. O golo de Kevin no Dragão, já nos descontos, quando nenhuma alminha encarnada teve o discernimento de fazer uma falta útil a meio-campo puxando-lhe os calções, a camisola ou os atacadores das botas. Ou o frango de Artur no Estádio Nacional que deu ao Guimarães de Rui Vitória a Taça de Portugal e fez Cardozo perder a cabeça com Jesus.
Televisão ou radar?
Passemos então ao Portugal-Coreia do Norte de 1966. Ainda morava em Tomar e juntámo-nos uma série de miúdos em casa do meu amigo João Cardoso na Fábrica do Papel do Prado, onde os nossos pais trabalhavam. Quem não é desses tempos não percebe a sorte que tem de poder ver jogos em ecrãs digitais gigantes com som estereofónico. Nós, mais do que ver, tentávamos descodificar, que nem operadores de radar à frente de um ecrã em tempo de guerra.
O televisor era mínimo, as imagens pouco contrastadas e a preto e branco. Mal se percebiam quem eram os nossos e quem eram os coreanos, excepção feita a jogadores com características físicas inconfundíveis como Eusébio ou Torres. Os outros, sabíamos lá se era o José Augusto, o Hilário ou o Morais. Era um gajo qualquer aos saltos que, no limite, até podia ser coreano…
Aos 22 minutos para espanto da miudagem já estávamos a levar três na pá. Até surgir aquele momento mágico, cinco minutos depois, quando Eusébio finta meia equipa coreana e atira a contar. Confesso que não vi, talvez por não ter sido mostrado logo, o momento mágico do jogo, hoje documentado em foto, quando o Pantera Negra entra a correr na baliza acabada de alvejar, pega na bola e corre para o meio-campo para a repor em jogo.
Ao intervalo havia 2-3 e tudo parecia possível. No espaço de três minutos Eusébio marca de bola corrida e de bola parada. No instante do 3-2 a miudagem saltou para festejar e eu, que era uns centímetros mais alto, acertei em cheio no lustre da sala e começaram a chover pingentes de vidro que nem flores na procissão ou papelinhos no Carnaval.
Perseguidos pela D. Celeste de vassoura em punho, festejámos a uma distância prudente o minuto 80, ouvido no transístor a pilhas de um operário, quando José Augusto arrumou a partida.
O resultado final foi de 5-3 mas em lustres foi de 1-0 para a rapaziada da minha criação.
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