Roland Garros 1999. Os saltinhos da dama Graf no seu último e perfeito título e a garota malcriada (por Lídia Paralta Gomes)

Jornalista
Tempos houve em que a internet era coisa incipiente e nem toda a gente tinha TV Cabo. Aliás, a televisão por cabo era privilégio de gente rica, quanto mais ali na aldeia, onde o que havia era um par de sortudas casas com antena parabólica que apanhavam a Polsat, uns canais espanhóis e o VIVA, um canal alemão de telediscos, que era o meu preferido - ali nas redondezas, só a Andreia, que era colega de escola da minha irmã, tinha semelhante luxo e os ajuntamentos (saudades) naquela sala eram frequentes.
Portanto, a minha infância alimentou-se a quatro canais, era o que havia, mas felizmente também estamos a falar de um tempo em que tínhamos futebol em canal aberto, a Fórmula 1 passava na RTP1, os Jogos Olímpicos também e a RTP2 fazia maluquices assinaláveis como dedicar serões a jogos de voleibol da seleção nacional (naquela altura ainda se tinha de ganhar o serviço para fazer ponto, vejam lá bem) ou tardes inteiras a ténis. E foi assim que eu aprendi que havia um torneio simpático em Portugal, lá para os lados do Jamor, e dei de caras, via aquele televisor da Singer que pesava várias vezes o meu próprio peso, com Thomas Munster, um austríaco de combate ou um tal de Alberto Berasategui, de quem na verdade só me lembro por causa do nome esquisito.
O Estoril Open apresentou-me ao ténis, é certo, mas não foi o Estoril Open me fez ficar irremediavelmente refém daquele duelo separado por uma rede, em que tantas vezes a batalha mental é mais importante que um half volley bem feito.
Para isso, é preciso ir à primavera de 1999, quando a RTP2 ainda nos fazia o favor de transmitir Roland Garros e eu achava que estava só a ver a final feminina do torneio. Mas não: estava a ver um thriller épico, com reviravolta, heroína e vilã e um desmoronamento emocional a acontecer ali ao vivo, como se uma final de um torneio não fosse apenas só um evento desportivo, mas sim um melodrama pintalgado a pó de tijolo, com consequências para as vidas das protagonistas.
O cartaz era, por si só, apetecível. De um lado Steffi Graf, veterana apesar de nem sequer ter então 30 anos. Trazia os seus 21 títulos do Grand Slam aos ombros, a única mulher da história a vencer todos os majors e medalha olímpica num só ano, em 1988. Do outro, Martina Hingis, 18 anos, the next big thing, a suíça que aos 16 anos já vencia nos maiores palcos, um caso sério de talento e precocidade, sobre quem eu ia lendo nas revistas para adolescentes que a minha irmã comprava - na verdade só via, e não lia, porque na altura a revista "Bravo" só se vendia por cá na sua versão em alemão, língua que até, com pena, não sei falar.
Hingis era hiperfavorita. Por uma série de razões que, na verdade, só soube mais tarde. Não só era número 1 mundial e 1.ª cabeça-de-série em Paris como Graf tinha chegado à final do torneio por mero acaso: a alemã queria despedir-se da carreira com uma vitória em Wimbledon, onde venceu por sete vezes. Roland Garros era, digamos, uma espécie de preparação para Londres. E logo no arranque, a coisa parecia mais ou menos encaminhada para Hingis: vitória no 1.º set e um break logo a abrir o 2.º parcial.
Mas eis que acontece um daqueles imponderáveis que fazem com que no desporto haja sempre lugar a milagres. O céu de Paris desabou, a final foi interrompida, eu provavelmente aproveitei para ir comer um prato de cereais e quando voltámos, eu e a final, nada seria como dantes. Porque logo após o retomar da final, uma decisão controversa da juiz de cadeira tirou um ponto a Hingis que a suíça jurava ser seu - e provavelmente tinha razão.
A coisa escalou.
Descontente com a decisão, Hingis fez aquilo que eu não sabia então ser um dos pecados capitais do santíssimo ténis: deixou o seu lado do campo, atravessou a rede e foi ao outro lado apontar para a marca que a bola havia deixado na terra batida. A reacção do público foi de escândalo, como se ali naquele court tivesse acabado de acontecer a maior das indignidades. A árbitra não deu razão a Hingis, esta esperneou e recusou-se a jogar até a intervenção da supervisora do torneio, enfim, todo um drama. Excelente para o entretenimento, meio ignóbil para a modalidade.
A partir daí, Hingis, que estava a um pequeno passo de, aos 18 anos, conseguir ter no currículo todos os títulos do Grand Slam, perdeu o público, perdeu a compostura, perdeu a final. A mim não me perdeu: já me tinha perdido quando uns dias antes tinha afirmado despudoradamente que já tinha preparado o vestido com o qual iria fazer a fotografia oficial com o troféu. Do alto dos meus 11 anos, aquilo não me pareceu bem, principalmente quando do outro lado estava Graf, que já não era a Graf de outros tempos, é certo, mas que ainda era a maior campeã da sua geração.
Talvez alimentada pelo súbito apoio ruidoso que lhe começou a chegar das bancadas do Philippe Chatrier, Graf agigantou-se no seu jogo de pés de pugilista, na sua dureza no fundo do court, até naquela esquerda cortada que eu aprendi a adorar apesar de ser uma pancada pouco graciosa e defensiva. Do outro lado, Hingis era engolida pelas circunstâncias. Aos 18 anos, talvez ninguém lhe tivesse ensinado ainda o que era ter o mundo contra si - nem tinham de ensinar. Aquela discussão sobre uma bola demasiado longa foi o início de um dos mais épicos e estrondosos meltdowns que alguma vez vi em directo.
Emocionalmente abalada, Hingis deixou fugir o 2.º set; no 3.º parcial Graf voou. E depois aprendi o que é o desespero num court de ténis. Vendo-se a defender um match point da adversária, com o público contra si e disposta a utilizar todas as armas, Hingis cometeu o pecado capital número 2: tentou um serviço por baixo, vulgo serviço em colher. Há muitas regras não-escritas no desporto e, no ténis, pessoas bem formadas não fazem serviços por baixo, por ser considerado um desrespeito para com o adversário - para mais quando o adversário era então só a recordista de títulos do Grand Slam na era open.
Hingis ganhou aquele ponto, mas perderia o encontro pouco depois. A última jogada ainda ressoa na minha memória: uma pancada de esquerda demasiado longa de Hingis, golpe de vista de Graf, a bola a cair-lhe aos pés, mas do lado errado da linha, os cinco saltinhos da alemã, a morder o lábio para segurar a emoção, um olhar incrédulo para o céu: sem contar, aquele título era seu, o 22.º e último major, o mais inesperado e feliz da sua carreira, diria já de saladeira na mão, na cerimónia de entrega de prémios.
Cerimónia à qual Hingis só apareceu, num pranto espantoso, arrastada pela mãe e treinadora, Melanie Molitor, que tinha moldado a filha para aquilo que ela própria não tinha conseguido ser: uma tenista de elite. E foi assim que eu aprendi que os pais não devem olhar para os filhos e ver-se a si próprios. Hingis, aliás, nunca mais ganharia um título individual do Grand Slam, retirando-se aos 22 anos, em 2003. Ainda voltaria a jogar em 2005, com sucesso relativo, mas pouco depois um controlo positivo precipitou a retirada definitiva.
Aquele jogo ensinou-me muito. Deu-me uma noção qualquer de karma, de quão imperioso é não se falar antes do tempo, não dar nada por certo. Do que a pressão pode fazer a uma pessoa. E ensinou-me também algo que me dá um jeitaço para a minha vida profissional: a acreditar nas histórias que o desporto tantas vezes conta para lá dos resultados. E a história de Graf no seu último Roland Garros é perfeita: não só venceu inesperadamente como na cerimónia dos campeões concedeu ao vencedor do torneio masculino, André Agassi, a honra de uma dança. Estão casados até hoje.
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