O meu jogo

Um dérbi que eu não vi, de um clube que não é o meu: o dia em que aceitei o Sporting (por João Diogo Correia)

Um dérbi que eu não vi, de um clube que não é o meu: o dia em que aceitei o Sporting (por João Diogo Correia)
Buda Mendes
O jornalista João Diogo Correia escreve sobre um Botafogo - Vasco da Gama, dérbi carioca. A rubrica "O Meu Jogo" convida o cronista, jornalista, ex-jogador, seja o que for, a relembrar-se dos eventos desportivos que mais o marcaram, como adepto ou interveniente

Parece mentira que um adepto de um clube com tão vasto historial de desilusões tenha, ainda assim, tantas memórias felizes. Nem sempre elas remetem a títulos, é verdade, mas é isso que ser do Sporting também significa: saber que a vitória nem sempre é possível, reconhecer o mérito do outro, o papel do infortúnio, aceitar os tropeções. Ser paciente. Não pedir demasiado da vida. O Sporting é como o poema: ensina a cair.

Não vejo mal nenhum nisso.

As memórias felizes que tenho do Sporting trazem quase sempre uma memória infeliz agarrada. Nenhum adepto com mais de 20 anos esquece o dia 05/05/05. Já muito perto das 23h, já eu chorava. Numa altura em que era demasiado novo para saber cair, desisti de ver o que faltava do jogo quando o Az Alkmaar, de Co Adriaanse (esse mesmo), fez o 3-1, a dez minutos do fim do prolongamento. Era a confirmação de que o Sporting não estava fadado para as jornadas heróicas e quase impossíveis que o futebol costuma dar aos adeptos dos outros clubes.

Minutos depois, ouvi gritos vindos da sala. Corri de uma ponta à outra da casa sem respirar e em mim sobrevive ainda outro grito, do mítico Jorge Perestrelo, que só mais tarde ouvi — “eu te amo Sporting”, repetiu, assim mesmo, à brasileira, três vezes e com a voz a falhar. A situação era de tal forma improvável que entre a bola na baliza e o grito passaram largos segundos. Marcar no último suspiro através do “patinho feio” da equipa era o oposto do Sporting, e representaria uma espécie de justiça poética por infortúnios passados (ainda não sabíamos dos futuros). O Sporting perdeu na mesma (3-2), mas há derrotas que sabem melhor do que outras.

E foi assim que criei uma das minhas melhores memórias futebolísticas: com um golo que eu não vi.

Às vezes parece mesmo que o Sporting vai oferecer-nos uma história heróica e quase impossível. Só que um sportinguista está sempre a pisar uma linha finíssima entre a comédia e a tragédia. O clube, sabemo-lo bem, perdeu, semanas depois e no próprio estádio, uma oportunidade única de fazer história. Fê-la na mesma, mas à sua maneira. E deixou-nos mais uma lição: nunca se deve ser feliz por inteiro. É demasiado arriscado.

Teria jogos sem fim para juntar a este, não fosse o espaço limitado e a escolha complicada. Opto por isso por um jogo que não vi, de um clube que não é o meu. Mas foi o jogo, ou o relato dele, que me ensinou a perceber e a aceitar o Sporting.

Eu vivia no Brasil.

Interessei-me pelo Botafogo, onde pontuava Clarence Seedorf, um dos poucos jogadores do Brasileirão daquela altura que eu conhecia bem. O bairro de Botafogo é “uma gracinha só” e outro motivo para optar por aquele time. E havia um terceiro, que era o facto de o ‘Bota’ estar em primeiro lugar, a jogar bom futebol. E, claro, Garrincha, o ‘Anjo das Pernas Tortas’.

Comentei o interesse com um amigo, brasileiro e futeboleiro em doses iguais, tricolor mas com ascendência botafoguense, que respondeu num sorriso. “Claro que um cara do Sporting só podia escolher o Botafogo.” Sorri de volta, sem entender.

O ‘Bota’ não acabou o campeonato em primeiro lugar. Também não acabou em segundo. Nem sequer acabou em terceiro, mas o que isso importa? Ele foi-me definido com a história de um amigo do meu amigo. No ano anterior, esse amigo, cujo nome não recordo, mas que na minha cabeça é Vitor, e esta é uma memória na qual não quero mexer, foi com o avô ver uma das finais do Campeonato Carioca, lá no Olímpico Nilton Santos, o “Engenhão”.

Era um clássico do Rio de Janeiro, Botafogo vs Vasco da Gama, e há sempre qualquer coisa de comovente na ida de avô e neto à bola. Eles ali estavam, os dois enamorados pelo ‘Bota’, e rindo. Rindo meio de alegria, meio de nervoso. Do outro lado, o Vasco tinha uma bela equipa, onde se incluíam Carlos Alberto (esse mesmo) e Juninho Pernambucano (esse mesmo). Era coisa para temer. E o avô do Vitor era um cara que temia muito, castigado pelos anos de fiel botafoguismo.

Tinham passado apenas cinco minutos quando ‘Loco’ Abreu, avançado do Botafogo, se vê sozinho na área, sem ninguém pela frente. O calor ameno de um abril no RJ passa a gelo. ‘Loco’ encosta suavemente a chuteira na bola, que caminha sem sobressalto para a baliza. 1-0, é golo do ‘Bota’. Estardalhaço no Engenhão.

O avô reage: “Ui, isto hoje vai ser difícil”.

Só um sportinguista sabe o que “isto” significa. Há uma frase muitas vezes atribuída ao cirurgião Eduardo Barroso, que, por azar, não é dele. Mas devia ser. Não só porque Eduardo Barroso é médico como, sobretudo, porque é um fervoroso sportinguista. A frase lê-se assim: “A saúde é um estado transitório que não augura nada de bom.” É como a vitória para o Sporting. E, pelos vistos, para o Botafogo.

De volta ao Engenhão. O jogo continua com o ‘Bota’ a dominar, sempre mais perto de ampliar do que de sofrer. Já muito perto do intervalo, ‘Loco’ bisa com o mesmo pé direito, o seu pior. 2-0, os gritos são agora de certeza: “É para ganhar”. O avô de Vitor celebra timidamente, ajeitando os nervos na cadeira. Finalmente chega o intervalo.

Como se imagina, o avô não tem estômago, que fará coração, para ver a segunda parte. E como qualquer sportinguista também sabe, estar a ganhar 1-0 é perigoso e estar a ganhar 2-0 é perigosíssimo. O velho sai ainda durante o intervalo e fecha-se no cinema, o único lugar que lhe parece seguro o suficiente para não ouvir nada sobre o desenrolar da partida. É uma atitude que sportinguista nenhum pode condenar.

No fim do jogo, Vitor haveria de explicar que o Botafogo fez o 3-0, num domínio que só foi atenuado a dez minutos do fim, com um golo de Carlos Alberto, que correu para o meio-campo, numa última esperança. O resultado não mais se alteraria, o que não muda a certeza do avô. “Ainda bem que eu fui embora.”

Aquela história de pessoas que não conheço fez mais pelo meu sportinguismo do que muitas vitórias, recordando-me que não há formas certas de viver o jogo (há formas erradas e sobre isso um sportinguista também tem histórias para contar). E há clubes especiais, entre os quais se cria uma solidariedade que não precisa de ser lembrada e que, percebi então, não exige sequer que saibamos dela.

Naquele dia, a tragédia do avô não aconteceu mas podia ter acontecido e isso é quanto baste. Tal como o avô, os adeptos do Sporting sabem que para haver desilusão alguém tem que estar iludido. E eles são muito bons a fingir que estão.


PS: O melhor jogo que já me foi dado ver num estádio de futebol aconteceu na Luz. O jogo era da Selecção. Estava lá, adolescente, ao lado do meu pai, a ver o Portugal-Inglaterra dos suores frios que Hélder Postiga fez correr pela bancada naquele penálti doentio de 2004. Ninguém tem dúvidas de como acabaria aquele penálti se a camisola de Postiga fosse a verde e branca que usaria anos mais tarde.

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