O que dizem os teus números

Sai da minha frente, eu quero passar: o que dizem os números de Matheus Nunes, o novo corredor com bola do Manchester City

Sai da minha frente, eu quero passar: o que dizem os números de Matheus Nunes, o novo corredor com bola do Manchester City
Matt McNulty

O internacional português, de 25 anos, leva dentro das botas uma qualidade que Pep Guardiola muito aprecia e começa a procurar cada vez mais para a sua equipa, algo denunciado também pelas contratações de Gvardiol, Kovacic e Doku: a capacidade de superar adversários. “Viu-se que era um miúdo que tinha alguma coisa diferente. Talvez seja dos mais rápidos do mundo com bola e é muito rápido a rodar. Melhorou muito na decisão”, analisa Gonçalo Santos, ex-companheiro no Estoril Praia. Através dos números da Driblab Pro, descascámos o jogo de Matheus Nunes e o que é expectável que aconteça no Manchester City

O campo do Ericeirense é um jardim artificial onde saltam muitas faíscas. O mar, que não está assim tão longe e que às vezes confunde as cores do ar que se aspira, traz aquela frescura que pode beliscar os ossos. Mais aconchegante do que os relvados a que estamos habituados a ver na televisão, no Henrique Tomás Frade o contacto entre jogadores é quase uma religião. Ou um jeito de viver. A coragem vê-se também aí, tal como nos rapazes que se exibem apenas em t-shirt. Matheus Nunes, agora futebolista do Manchester City, vestiu em tempos aquela farda azul e branca que tem no peito um símbolo onde pontifica uma âncora. Mesmo garoto, dava nas vistas.

“Ele ainda era júnior quando jogou contra nós. Destacava-se sobretudo pela dimensão física, pela potência. Era muito forte nos duelos, nas divididas”, recorda Bernardo Vaz, que em 2016/17 era o adjunto do Linda-a-Velha, uma equipa que enfrentou o Ericeirense no Pro-Nacional, a então principal divisão distrital de Lisboa. “Ele tinha muita entrega. Transportava a bola, tinha bom passe curto e longo. Tecnicamente, não era espetacular, mas ainda hoje não é, mas evoluiu muito. O raio de ação dele era enorme. Recuperava muitas bolas, era um box to box. E tinha golo. Não sei se foi nessa época que fez oito, 10 golos. Era realmente bom jogador.”

As qualidades do rapaz nascido no Rio de Janeiro e que já seguia a Premier League com vontade, pois o padrasto é de Sunderland, fizeram soar os alarmes na Rua Dom Bosco, no Estoril. O maior clube do concelho de Cascais foi buscá-lo para a equipa de sub-23, mas Luís Freire, hoje no Rio Ave, gostou do que viu nos treinos e foi usando-o na equipa principal, na II Liga. Foi aí que Gonçalo Santos, na altura um médio experiente, se cruzou com ele.

“Desde a pré-época que se viu que era um miúdo que tinha alguma coisa diferente”, conta o ex-futebolista, agora adjunto de Filipe Martins no Casa Pia, sobre aqueles seis meses em que conviveram. “Vinha de um contexto muito baixo, mas tinha a irreverência, a condução de bola, a velocidade com bola, talvez seja dos mais rápidos do mundo com bola, a rotação… é muito rápido a rodar! Melhorou muito na decisão”, analisa o ex-companheiro, alguém que era muito alegre e feliz no balneário, um jogador que trabalhava “sempre nos limites”.

O mapa de calor de Matheus Nunes desde 2021/22
Driblab Pro
Os passes chaves de Matheus Nunes desde a temporada 2021/22
Driblab

A escalada meteórica foi confirmada ainda durante essa temporada, em 2018/19. A segunda metade da época foi jogada em Alcochete, nos sub-23 do Sporting. Rúben Amorim também acabou por o puxar para perto das vedetas e afinou aquela maquinaria toda, a que tinha à disposição e o tesouro que vivia em Matheus Nunes. O médio foi campeão nacional ao lado de João Palhinha. Por pouco, esta janela de transferências não colocou um no Manchester City e outro no Bayern Munique.

Antes disso, da chegada ao Etihad para defender um treble, deu-se a saída de Portugal para o Wolves, o que provocou um pequeno terramoto na relação entre Rúben Amorim e a direção leonina, presidida por um homem que afirmou numa entrevista ao canal do clube que aquele mesmíssimo jogador ia pagar o treinador. A transferência do médio para a Premier League na semana do clássico com o FC Porto, numa altura em que Amorim achava que já ninguém sairia, deixou o treinador exasperado. “Obviamente que estou insatisfeito. Se não estivesse, alguma coisa se passaria. É um jogador que faz falta, não contava perdê-lo”, admitiu.

O destino escolhido uivava surpresa, talvez não tanto se tivermos em conta as relações do seu agente com o clube em questão e a lógica desse mundo que saliva por comissões a cada trespasse. Matheus Nunes parecia talhado para camisolas feitas de uma matéria diferente. E a época do Wolves, que lutou pela permanência na principal divisão inglesa, comprovou o tiro ao lado. Nunes não saiu nada beneficiado e até perdeu o lugar na convocatória da seleção nacional, uma situação que deverá ser corrigida muito, muito em breve e que tratará de engordar as 11 internacionalizações que soma até aqui, até porque se trata de um médio que quebra o modelo lusitano e oferece outras coisas.

Esta transferência do futebolista luso-brasileiro para o campeão inglês intriga e tem toda a lógica do mundo em simultâneo, se é que isso é possível. Puxando a fita atrás, é importante lembrar que Pep Guardiola beijou a testa de Matheus, metaforicamente, depois daquele avassalador 5-0 dos cityzens em Alvalade, em fevereiro de 2022, para a Liga dos Campeões. O catalão disse que o atleta era um dos melhores jogadores do mundo (e agora pagou €62 milhões por ele).

Matheus Nunes supera Kevin de Bruyne numa das suas tradicionais correrias
Soccrates Images

Ainda que tenha sido engolido pela teia de Rodri, Bernardo Silva e Kevin de Bruyne, Nunes tocou 57 vezes na bola, completando 40 dos 46 passes que tentou, acertando ainda cinco dos nove passes longos que arquitetou, revelavam os dados do Sofascore. Ganhou metade dos duelos térreos, foi driblado duas vezes, fez apenas uma falta, tal é a apatia gélida e distante que semeia aquele jogo tricotado-guardiolista, e perdeu a bola em 11 ocasiões. Mas saiu por cima no drible, completando três dos quatro que tentou.

E é aqui, neste parâmetro, que provavelmente se explica a mudança para o Manchester City de Matheus Nunes, de 25 anos. Numa entrevista para a “Goal” de Espanha, há sensivelmente quatro anos, Pep Guardiola deu uma aula durante 90 minutos e explicou muitos detalhes do seu jogo e do seu pensamento. “Hoje em dia, sem jogadores que eliminam adversários, não é possível”, começou por dizer quando lhe perguntaram se o drible estava em perigo.

“Ou seja, se ataco uma equipa que está metida à frente da sua baliza sem gente que elimine os [jogadores] de fora, ou que não te consiga gerar uma superioridade, tanto por dentro como num movimento no espaço, é impossível. No futebol precisas de tudo. Às vezes, para julgar ou criticar algo que não se gosta, dizemos que isto é assim [as mãos paralelas denunciaram que se referia a algo estanque]. Não, o ‘jogo de posição’ exige gente forte fisicamente, gente que faça movimentos sem bola, dentro e fora, no espaço, gente que drible por dentro e por fora, gente com capacidade para defender a 40 metros [de distância da própria baliza], gente que saiba ler em função de quem salta [na pressão] e onde está o homem livre”, continuou, imparável, frenético como sempre quando o palco não é uma conferência de imprensa.

Resumindo, explicou assim o seu estilo de jogo: “Jogar bem, do meu ponto de vista, é tomar uma decisão em função do movimento do adversário. Se tenho um central [com bola] e salta [na pressão] um extremo, é o lateral que está livre. Não me expliques como, mas a bola tem de ir para o lateral”, confessou, dando outros exemplos semelhantes antes de esclarecer que é por dentro, pelo corredor central, que se faz realmente mossa no oponente.

A intriga nesta trama prende-se com a preferência de Guardiola por Matheus Nunes, não só porque não é do mesmo calibre nem natureza de Lucas Paquetá – supostamente o alvo prioritário, que caiu depois de um alegado escândalo de apostas –, mas também porque já contratara Mateo Kovacic, um médio com um perfil semelhante, pelo menos à vista desarmada.

A comparação estatística entre Matheus Nunes (azul) e o centrocampista médio da Liga Portuguesa em 2021/22
Driblab

Mergulhemos então nos números da Driblab, uma empresa especializada em dados. Em 2021/22, ao serviço do Sporting, Matheus Nunes completou 2.54 dribles por jogo (contra 0.85 do centrocampista médio da Liga) e distinguiu-se sobretudo na pressão, nas progressões com bola e na participação da jogada que permitiu a um colega assistir outro (xG Construção, no gráfico). O passe, como desde os tempos na Ericeira com a maresia como testemunha, estava afinado: 86.2% de acerto (vs. 82.4% do centrocampista médio do nosso campeonato). A boa bola longa, uma arma que foi refinando, aconteceu três vezes por jogo – a estatística assume como bola longa os passes para lá dos 32 metros. Em sentido contrário, estavam as perdas de bola e o débil jogo aéreo do jovem que em tempos idos ajudou a família na pastelaria antes dos treinos.

Na Premier League, numa equipa que viveu em agonia a maior parte do tempo e, portanto, não permitiu ao jogador ter o protagonismo que teve no passado, as bolas longas melhoraram ligeiramente (a baliza adversária ficou mais longe…), mas os restantes parâmetros caíram todos. No Mundial 2022, por exemplo, onde fez apenas 87 minutos, Matheus Nunes foi exemplar no passe (93.1%), o que, conhecendo a realidade, fala mais do conservadorismo da seleção de Fernando Santos do que de uma transformação da essência do jogador, já que foi pouco influente através das suas principais ferramentas - na qualidade para levar a bola para a frente, queimando linhas, e a eliminar adversários.

É isso, no fundo, que Pep Guardiola vai querer dele, que quebre linhas quando o jogo está bloqueado ou o adversário está bem montado e abana pouco. Tal como será isso que quererá também de Josko Gvardiol, o central esquerdino que encantou no Campeonato do Mundo, e de Jérémy Doku, o extremo que assinou 11 dribles por jogo em 2022/23 – 60.4% deles bem-sucedidos –, o que faz dele o Garrincha dos tempos modernos (ou o melhor driblador das big five com pelo menos 900 minutos, vá), segundo o “The Athletic”.

Comparemos então o que Kovacic tem feito esta temporada pelos cityzens e o que Matheus Nunes fez em 2021/22 (misturando campeonato e Liga dos Campeões), pelo Sporting, para estarem ambos em condições semelhantes, num grande de uma liga. O português ganha sobretudo, e de uma forma significativa, em três segmentos: bolas longas completas por jogo (2.92 vs. 1.81), dribles completos a cada 90 minutos (2.62 vs. 1.03), interceções (1.2 vs. 0.41) por jogo e na pressão a morder os rivais. Por outro lado, o croata mostra como se faz ao nível do passe certinho (92.6% vs. 85%) e, curiosamente, na progressão da bola (14.7 vs. 11.1) – a Driblab contabiliza o número de vezes que o jogador faz a bola avançar 10 ou mais metros, seja através do passe ou de correrias.

A comparação entre Matheus Nunes (azul) e Kovacic na temporada 2021/22, na qual ambos estiveram em equipas de destaque dos seus campeonatos
Driblab
A comparação entre a melhor versão de Matheus Nunes (azul), no Sporting 2021/22, e a época passada de Kevin de Bruyne na Premier League
Driblab

Olhando para a truta mais mediática, Kevin de Bruyne, a comparação entre ambos também deixa dados curiosos.

O internacional por Portugal, na sua melhor versão dos dados disponíveis (no Sporting de 2021/22), até ganha nos passes completos (85% vs. 80.7%), o que sugere um debate entre a segurança do português e o veneno do belga. Lembrando que os dados de Matheus dizem respeito à Liga Portuguesa, que não tem nem de perto, nem de longe o andamento e a fisicalidade da Premier League, também nos dribles a diferença foi atroz (2.73 vs. 0.97). De Bruyne dá uma valente sapatada nas chances criadas (3.3 vs. 0.73), nas assistências esperadas (0.45% vs. 0.07%) e na progressão com bola (15 metros vs. 11 metros). A título de curiosidade, e deixando bem claro que os números nem têm estudos para explicar o que Bernardo Silva faz em campo, Matheus Nunes ganha ao mago canhoto sobretudo nos dribles completos por jogo (2.68 vs. 0.93), na pressão que exerce sobre o rival e nas interceções (1.3 vs. 0.74). Bernardo, pois claro, trata da construção e de levar mais vezes a bola para perto da baliza do adversário.

Há quem denuncie que o futebol moderno é como xadrez, no sentido em que a invenção vai perdendo espaço para o calculismo. Aquela ideia de se jogar em função do movimento que o rival faz dá a sensação de ser algo treinado até à exaustão, criando um jogo padronizado, menos livre, mais previsível. E os adversários vão sempre tentando atacar essa inventividade premeditada de Pep Guardiola e de outros, seja através de autocarros e do encurtamento do campo, da povoação de determinadas áreas ou de marcações homem a homem.

E há outro detalhe na ratoeira montada pelo treinador catalão, de 52 anos. Com a chegada de Erling Haaland, um avançado demolidor, a equipa não só ganhou alguém insaciável e ultra competitivo na frente, como garantiu automaticamente outra camada: a fisicalidade e a velocidade do tigre da Noruega permitem ao City estacionar uns metros atrás, sem que viva obcecado com ter sempre a bola e roubá-la o mais à frente possível. Estão menos expostos agora, notou-se bem na Liga dos Campeões da época passada. E esta nova lei guardiolista, mais plástica e que atenta contra os que são mais pepistas do que Pep, vai beneficiar jogadores explosivos e com um gostinho especial para correr em campo aberto (nos metros deixados por essa postura coletiva da equipa) e contornar adversidades, como cavalos selvagens.

É por isso que ter jogadores que tenham a capacidade de superar um ou outro adversário é ouro (antes arte, agora necessidade), pois transforma a jogada num mundo novo: a seguir, um outro rival terá de largar o seu homem para ir morder o atrevido portador da bola. E assim cai toda uma estrutura defensiva, uma peça de cada vez.

No futuro, os homens e as mulheres que driblam ou eliminam os seus rivais vão ser tão preciosos como a escassa água.

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