O que dizem os teus números

Um muro difícil de superar com olhinhos nos pés: o que dizem os números de Ousmane Diomande e como explicam a cobiça europeia

Um muro difícil de superar com olhinhos nos pés: o que dizem os números de Ousmane Diomande e como explicam a cobiça europeia
SOPA Images
O central costa-marfinense, de 19 anos, chegou a Alvalade em janeiro e cedo causou sensação pela relação com a bola e pela forma como procurava os colegas, com uma compostura e fineza admiráveis. Ainda em formação e, como avisou Rúben Amorim, com erros cometidos e por cometer, Ousmane Diomande é um daqueles futebolistas que dá gozo ver jogar. E os números da Driblab Pro ajudam a perceber porquê e quanta falta fará o defesa aos leões caso a lesão sofrida frente ao Rio Ave seja complicada

“Ainda há não muito tempo, ser lento era uma virtude. Não estou a falar de ser preguiçoso ou indolente, mas de fazer as coisas devagar, com eficiência, mas dando-lhes o tempo necessário. Mover-se, caminhar, despedir-se com uma lentidão educada, sublinhava a dignidade de uma pessoa. Conferia um ar de respeitabilidade. Até elegante. É por isso que os antigos monarcas, filósofos e aristocratas se deslocavam lentamente. A razão era o respeito que os velhos e experientes, livres da pressa e dos impulsos da juventude, impunham naquela época. Eram referências que as pessoas tentavam imitar.”

Assim começa a “Teoria da lentidão” de Arturo Pérez-Reverte no “ABC”. Ousmane Diomande cabe nessa gaveta desenhada pelo escritor, qual artesão à procura da afinação perfeita para a definição. Nascido há 19 anos em Abidjan, na Costa do Marfim, o central do Sporting tem coisas de ancião, de velho filósofo, de homem respeitável. A tranquilidade com que toca na bola (e é aqui que misturamos o conceito com lentidão), a calma com que procura os melhores caminhos, como conduz a bola e evita obstáculos, como respeita o futebol a cada gesto, conferem-lhe tal estatuto, ainda mais com uma deslumbrante carapaça negra que se estica ao longo de 190 centímetros. É certo que, por vezes, causa alguns arrepios nos adeptos que metem um leão ao peito e na garganta, como no jogo com o Rio Ave (em que até saiu lesionado nos descontos), mas faz parte do processo de se tornar gigante, um grandioso defesa central, honrando quem sabe o legado de André Cruz e Luizinho.

Rúben Amorim, em abril, já avisara exatamente sobre esses caprichos da evolução e da serenidade ou dissimulada serenidade do central resgatado à II Liga, então no Mafra por empréstimo do Midtjylland. “Acho que ele às vezes está nervoso e ansioso, dá para ver pela forma como toca na bola. Às vezes, o estar demasiado descontraído é uma segurança para tentar não demonstrar a ansiedade e o nervosismo. E eu digo isto para termos noção de que é um miúdo que veio da II Divisão e que ainda tem passos a dar. Durante o seu percurso vai ainda ter um ou outro problema como todos os jogadores têm”, alertou antes de tirar o chapéu ao futebolista africano pela entrada corajosa contra a Juventus, em Turim. “Acho que ele já está num patamar que não imaginávamos que já estivesse neste momento”, confessou então o treinador que coloca muitíssima responsabilidade nos três centrais, sobretudo nos que jogam mais perto da linha, para criarem jogo e inventarem passes para derreter as teias defensivas adversárias.

Se a complexidade do jogo de futebol e da vida do futebolista não bastasse para entupir o foco de Diomande, chegam agora por todos os lados rumores do interesse na sua contratação de enormes ou endinheirados clubes, como Arsenal, Manchester City e Newcastle.

Com o desaparecimento do espaço no meio-campo adversário, o que matou o 10 corredor ou o vagabundo viciado em arte, até o 6 construtor, que víamos em Busquets por exemplo, vai perdendo o protagonismo. O campo está a encolher, os atletas são cada vez mais atletas e os treinadores estão obcecados com o encurtamento das linhas, matando as correrias alheias ou o tempo para pensar, com marcações individuais ou povoamento de determinada zona do campo. É por essa razão que os defesas são cada vez mais valiosos, pois carregam em cima dos ombros a árdua tarefa de, para além de defender (menos quando estão em equipas grandes), descobrirem os melhores caminhos para atrair e enganar o rival ou aproveitar um passe vertical nas costas dos médios com uma camisola diferente.

Mapa de calor de Ousmane Diomande contra o Sturm Graz
Driblab Pro
Os passes de Ousmane Diomande contra Sturm Graz
Driblab Pro

Futebolistas como Ousmane, ainda que obviamente em formação, apresentam argumentos que fazem salivar qualquer um, primeiro quem gosta de defesas que tratam bem a bolinha, fazendo uma vénia aos senhores de outros tempos (hallo, herr Beckenbauer), mas também aos treinadores que partem a cabeça para levar a bola pelos caminhos que prometem o sonho molhado do povo, o golo. Ou então, os que permitem defender com bola, anulando o rival, escondendo-lhe eternamente a bola. É preciso coragem e pés, e Diomande, mesmo errando aqui e ali, tem isso tudo.

Em março, ao jornal do clube, ele confirmou. “Sou um jogador que gosta de ter a bola no pé. Quando a tenho, só penso em encontrar boas soluções, mantendo-me sempre calmo”, referiu. "Também sou capaz de entregar bons passes e acho que sou bom na antecipação. E fico feliz quando faço um bom carrinho”, alongou-se, numa altura em que ainda sentia necessidade de se explicar. Já não é necessário.

Deixemos então que os números expliquem este defesa que tem Didier Drogba como ídolo – já leva dois golos esta temporada – e que já se estreou pela seleção, não sem antes fazer uma dança cheia de categoria, uma tradição planetária que toca sempre aos rookies. Viajamos à boleia dos números da Driblab Pro, uma empresa especializada em dados.

A primeira curiosidade relativamente aos dados do central prende-se com o quão diferentes estão os gráficos do futebolista comparando os 610 minutos de 2023/24 e os 944 minutos de 2022/23, só em relação ao campeonato. Há diferenças interessantes. Por exemplo, Diomande deixou de ser superado por adversários e ganha muito mais bolas nos duelos aéreos, mas faz menos cortes, interceções, revelando também uma quebra na taxa de sucesso no passe (calma, acerta 88 a cada 100, nem todos fáceis, já sabemos), ainda que estejamos a falar de margens pequenas, oferecendo assim outra forma ao desenho relativo às estatísticas em campo. Mais: este ano vai tendo menos peso na construção de jogadas de golo e apresenta menos bolas longas completas (passes acima dos 32 metros).

Os 610 minutos de Diomande na Liga 2023/24
Driblab Pro
A comparação dos dados estatísticas entre Diomande (azul) e Inácio
Driblab Pro

Juntando a informação das duas temporadas de Diomande, comparamos agora com Gonçalo Inácio, o defesa que faz o mesmo papel pela esquerda. Sem surpresa, são jogadores semelhantes, ainda que Diomande seja muito mais eficaz na hora de não ser superado por avançados e também a cortar bolas. O internacional pela Costa do Marfim faz também mais faltas, talvez denotando, ainda que por pouco e talvez especulando, mais agressividade. O canhoto português supera o costa-marfinense sobretudo nas bolas longas completas e nas interceções. Uma curiosidade: ambos apresentam números semelhantes no jogo aéreo e na qualidade do passe, ou pelo menos no passe que chega a um destinatário, pois a estatística ainda é cega quanto às melhores decisões.

Sem surpresa, Diomande tem valores bem mais interessantes do que o defesa médio da liga portuguesa, até porque goza das características de futebolista para equipa dominadora, evidenciando-se na construção de jogo, nos cortes, na dificuldade que os avançados têm para o superar e, naturalmente, na já famosa qualidade de passe. O defesa médio da Liga, pois não joga em grandes clubes e por isso tem menos bola (e a maioria tem menos qualidade, é certo), sai mais valorizado no jogo aéreo e nas interceções. A título de curiosidade: Diomande faz mais faltas do que o defesa médio e, sem surpresa, perde mais bolas perigosas também.

Comparação entre dados de Diomande e o defesa médio da Liga em 2022/23
Driblab Pro

Finalmente, para colocar Ousmane Diomande na rota dos tubarões, resgatamos à Premier League os dados de Josko Gvardiol, o croata contratado pelo City que foi uma das sensações do Campeonato do Mundo e do mercado de transferências. O canhoto, de 21 anos, tem apenas contabilizados 425 minutos nesta Premier League e comparamos esses mesmos minutos com os 1554' de Diomande na Liga esta época e na anterior, sendo que o defesa chegou a Alvalade apenas em janeiro. Gvardiol ganha com distância nas bolas longas completas, algo talvez a melhorar ou a explorar pelo jovem leão, e até ligeiramente na qualidade de passe. Embora seja óbvio, convém lembrar que os cityzens são um paraíso de opções de passe, onde a posse de bola é quase uma ditadura de tão esmagadora que é ou pode ser e onde estão espalhados pelo campo extraterrestres fardados com aquela camisola azul-céu. Portanto, a comparação respeita meramente princípios lúdicos ou prazerosos.

Continuando. Diomande, talvez porque tenha mais oposição, apresenta mais trabalho defensivo, nomeadamente nos cortes e na virtude de não ser fintado ou superado pelos magos da bola. O africano perde mais bolas perigosas e faz mais faltas em comparação com o europeu. Mas afinadas aqui e ali algumas coisas na fábrica de Alcochete e o perfil não está assim tão distante, tal é a paciência e a agora mui badalada resistência à pressão que ambos apresentam.

A comparação dos dados de Ousmane Diomande (azul) e Josko Gvardiol
Driblab Pro

Marco Caneira, formado no Sporting e hoje comentador na SIC Notícias, aprecia as condições físicas “impressionantes” do atleta dos leões. E com a bola no pé? “As debilidades deste tipo de jovens tem a ver com a liberdade que têm na forma de sair [a jogar], de quererem mostrar-se, de querem dar-se a conhecer pela capacidade técnica”, reflete, garantindo que o eventual afastamento devido à lesão muscular que sofreu no jogo com o Rio Ave penaliza a equipa de Rúben Amorim, atualmente no topo da classificação.

“O Sporting perde se ele não estiver na máxima condição para dar o seu contributo porque é alguém que está cada vez mais consolidado na forma de jogar da equipa, pela capacidade aérea defensiva e ofensiva, pelo respeito que já impõe, não sendo ele um dos líderes, na minha opinião, pois temos [Sebastián] Coates e o Gonçalo Inácio, mas é um Sporting que acaba por perder porque desmonta o trio de centrais.”

Sobre bolas de cristal e os irresistíveis rumores e os desejos alheios, Marco Caneira não se quer meter com o futuro, porém, embora se vá falando sempre no mercado de verão, o ex-futebolista lembra que há um mercado de inverno, caso “as coisas estejam a correr bem”. Seria uma baixa importante. O central que jogou muitas vezes a lateral, deixando o futuro e o fado para outros, confessa que sim, que o defesa costa-marfinense “é muito apetecível”, pela idade e potencial que tem.

“Temos visto muitos casos em Inglaterra”, continua Caneira, “com a capacidade financeira que têm, acabam por contratar jogadores já consolidados, com 20 e 21 anos, por 80, 100, 60 milhões de euros, diluindo depois esse valor ao longo dos anos porque compram um jogador muito jovem.” É quase como comprar o futuro, chega a dizer o antigo internacional português, hoje com 44 anos. Ainda mais quando se identifica uma assinalável maturidade para jogarem nesses grandes campeonatos.

Lá está, recuperando a “Teoria da lentidão” de Arturo Pérez-Reverte, Ousmane Diomande parece ser um jovem velho sábio. Devagar, procura o colega no espaço adequado. Aprendendo mudamente a cada dia que passa, descobre os segredos do jogo, mas também semeia alguns calafrios, nele e nos outros, com a lentidão dos seus gestos que procuram a perfeição e a melhor solução. A referência dele no mesmo ofício é Sergio Ramos, o homem dos golos importantes.

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