Há quem jure que o grande embate desta semana é a primeira mão dos oitavos de final da Taça dos Campeões Europeus (insisto em chamar-lhe assim) frente ao Barcelona. Outros, gente de boa-fé, asseguram que é a 25.ª jornada do Campeonato (Liga Betclic, mania minha) contra o Nacional da Madeira. E não nego: ambos são confrontos de vida ou morte. É o futebol na sua essência – um jogo de vida ou morte, sem espaço para meias-palavras nem meias-paixões. Nenhuma surpresa aí: todos concordamos.
O que nem todos imaginam é que, no próximo Sábado, naquele pavilhão de betão-armado ao lado do Estádio actual, se joga algo mais profundo do que a vida e a morte. A 8 de Março de 2025, das nove e meia da manhã até Deus sabe quando, a Assembleia Geral Extraordinária do Sport Lisboa e Benfica não vai decidir um regulamento, um parágrafo ou aquele ponto 3 da convocatória. Não, meus caros: o que está em causa é o próprio Benfica.
A identidade de um clube pode ser subtraída sem que ninguém dê por isso. De um dia para o outro, os valores evaporam-se, o estádio já não tem as mesmas vozes, e os sócios – atónitos – dão por si convertidos em clientes de um espectáculo que deixou de lhes pertencer.
Este Sábado, porém, não é sobre futebol. É sobre o futuro do clube.
Os últimos estatutos que vigoraram no Sport Lisboa e Benfica foram aprovados na calada do sossego vieirista. Então, dizer coisas como estas era quase criminoso, relegado para blogues obscuros e iluminados apenas pelo brilho dos monitores. Para tristeza geral, esse tempo ainda não acabou. Rui Costa, delfim do delfim, carrega o peso daquela era. Se quer libertar-se dele, não se pode perder em contradições.
Querem exemplos? Usou esta revisão estatutária como promessa de campanha, mas absteve-se nas diversas Assembleias de aprovação. E agora, nem um apelo aos sócios para comparecerem na magna reunião. Querem mais? A marcação do Dia das Casas do Benfica para a mesma data da Assembleia – precisamente as Casas que perderão o direito a 50 votos, caso os estatutos sejam aprovados. Lá virão elas, em alegre romaria, em autocarros pagos por quem for, prontas a aplaudir ou a vaiar conforme o guião.
E, de súbito, qual relâmpago numa noite plácida, surgem dúvidas, insinuações, atropelos. Descobriram-se pretensas “ilegalidades” nos estatutos. Quem antes aprovava tudo sem pestanejar, agora acordou com a pulga atrás da orelha.
Eu, por mim, limito-me a recolher recortes, a lê-los e relê-los, a tentar extrair algum sentido – uma tarefa inglória num mundo de mistificações e arrebatamentos esotéricos. Não tenho cursos em Ciências do Desporto, nem sou especialista credenciado. Sou apenas um miserável adepto que, um dia, se fez sócio do único clube que poderia amar.
E por isso, na obtusidade desta minha condição, não percebo a pasmosa pusilanimidade desta Direcção em relação ao tema. Os estatutos do Benfica não são um adereço, nem um passatempo para advogados de serviço. São o que o antigo Estádio da Luz foi: uma cidadela, um símbolo, um juramento de que o clube é dos sócios. Cada artigo é um saco de cimento, carregado ao longo destes últimos anos por benfiquistas que não se conformaram com a infâmia estatutária dos tempos de Vieira. Não nasceram em laboratórios, nem foram cozinhados num gabinete. Foram levantados como se levanta uma casa: tijolo a tijolo, gente a gente.
O Benfica dos últimos 30 anos teve a sua dose de histórias e contrahistórias dignas de um enredo de Graham Greene. Mas há limites. O clube não pode ser um vaudeville de leis cozinhadas na penumbra e jogos de bastidores para viciar resultados.
Esta Assembleia não é um jogo secundário nem um encontro para cumprir calendário. É um referendo à alma do Benfica. Se os estatutos forem aprovados, o clube dá um passo em frente. Torna-se mais igual a si próprio, mais popular, mais equânime. Se forem travados, cada sócio terá de se perguntar: a quem serve isto? Quem, afinal, tem medo do Benfica?
No Sábado, caros consócios, não votamos um simples regulamento. Votamos se o Benfica é nosso.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.