Os motoristas de Uber são os oráculos da nossa era. Profetas discretos atrás do volante, com a sabedoria do mundo a ferver. Mas ninguém os ouve; é um sinal dos tempos. Porque, no tempo dos táxis, não havia outro remédio: falava-se. Agora não. No Uber reina o silêncio higiénico dos auscultadores nos ouvidos e a placidez da paisagem digital. Como se o passageiro, ao entrar, fosse para dentro de uma cápsula.
Mas eu falo. Quase sempre. Como nesse dia. O homem era moçambicano. Começou-se pelo tempo, depois as obras em Lisboa, até parar no futebol. Quando lhe disse que era do Benfica, sorriu e contou uma história.
Ia assim. Há trinta e tal anos, em trabalho, fez de carro a longa travessia até à Checoslováquia. A Cortina de Ferro teria acabado de cair e as fronteiras ainda se passavam como quem atravessa as Colunas de Hércules. Algures na Europa do Leste deparou-se com uma fila interminável. E, como bom português — perdão, como bom moçambicano — fez o que qualquer um de nós teria feito: viu uma faixa vazia ao lado e foi por ali fora, a ultrapassar dois, três, quarenta carros de uma assentada. Resultado: cerco policial. Fardas, vozes graves, mãos no volante, revista ao carro, documentos. Essas coisas que imaginamos desses tempos e lugares sombrios.
Mas ele atirou: “Sabe, eu sou do único país da Europa que tem uma estátua de um negro.” O guarda empalideceu. “Como assim?” “Assim mesmo. Uma estátua. De um negro. Não sabe quem é?” Não sabia. Telefonou ao superior. “Superior, daqui subalterno. Está aqui um sujeito que afirma que há um país europeu com uma estátua de um negro.” Do outro lado a resposta firme, aberta, luminosa: “Claro! É o Eusébio!”
Contou-me isto como quem acabava de relatar um milagre. Como quem puxa aquela velha alavanca que, a nós benfiquistas, nos serve de consolo nas piores horas. A alavanca da grandeza do Benfica. Uma espécie de Portugal que se cumpriu. Como o Brasil ou a rede Multibanco.
Ora, essa é uma grandeza que nem Rui Costa, no esplendor da sua incapacidade, consegue apequenar. Porque, no final desta temporada (parabéns, Sporting), o ex-jogador que quis ser presidente decidiu oferecer-nos uma pálida imitação de Pinto da Costa — que viverá sempre em todos os dirigentes que debitem frases feitas com voz trémula. “Lage começa a próxima época.” Assim mesmo. O treinador é incapaz, mas continua. Porque agora é assim: contra tudo, contra todos, contra a realidade.
Está provado que Rui Costa não sabe gerir. Não sabe estruturar a área do futebol. Não sabe definir uma linha estratégica vencedora. Investe e investe para resultados nulos. São quatro anos de nevoeiro. De indecisão. De um clube que não se encontra. Que se habituou a ser só uma coisa mais ou menos.
O treinador, com um lote de jogadores que parece o melhor plantel da Liga, nunca se afirmou como uma equipa sólida. Um banco invejável — mas mal gerido. Bruno Lage não sabia fazer substituições. Sentava-se quem devia resolver. Di María? Fez dez jogos a mais. Bruma? Dez jogos a menos. Eu aqui, cheio de vontade de escrever um texto sobre ele — e nada.
No alto do seu castelo, Macbeth está isolado. Desculpem, enganei-me — queria dizer que Rui Costa está isolado. Cercado por sócios cada vez mais impacientes, por um clube dividido, por jogadores perdidos, por uma ideia de autoridade esgotada. Continua a falar como se mandasse em tudo. Mas está a reagir, não está a liderar. Em vez de reconhecer as evidências, prefere mais um gesto de afirmação de uma autoridade pálida, abatida, vazia. E, por orgulho, nega que a floresta de Birnam se move. Desculpem, enganei-me outra vez. Queria dizer que por orgulho começou a tomar decisões erradas. A insistir no treinador errado. A recusar mudar. A fechar os olhos à própria sombra.
E as eleições? Em Outubro? Com o campeonato a correr, com a Europa em andamento? Como pode um novo presidente, que não sendo o actual, preparar e planear uma nova época com a casa a arder? Terá de aceitar os alicerces montados por uma direcção em fim de linha? Terá de aceitar um treinador que não escolheu? Jogadores que não pediu? E compromissos que não subscreveu? Que espécie de renovação seria essa, se começasse a meio da peça, com os cenários montados e os actores já em palco?
Rui Costa deve demonstrar que é benfiquista. Benfiquista a valer. E apresentar, já na próxima Segunda-feira, a sua demissão. Com isso, permitiria antecipar eleições para Julho, dando tempo a qualquer candidato para apresentar um projecto e aplicá-lo na totalidade. Um novo presidente, eleito com legitimidade e margem, poderia definir treinador, plantel e filosofia. Desde o início. Desde a raiz. Com tempo. Com critério. Com mão.
Só falta uma substituição: a dele. E já vem tarde.
Porque a Escócia já não é trono. Já não é glória. Já não é casa. E Macbeth, coitado, já não é guerreiro. Já não é rei. Já não é homem. Perdão, enganei-me outra vez. Mas vocês perceberam o ponto.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.