O drama do Benfica é este: em vez de se olhar para dentro, olha-se para fora. Em vez de se olhar para as reservas, folheia-se o catálogo do Mendes: um homem incapaz de se comover com lealdades antigas, atento apenas a ganhos futuros. E Rui Costa, em vez de andar em reuniões a ver se encontra maneira de trazer João Félix, devia olhar para o Benfica e procurar onde está o novo Félix
O meu amigo André tem uma teoria. E é uma teoria violenta. Diz ele que um homem se revela em campo. Que a essência, o carácter, a alma, tudo se revela ali, à flor-da-pele, quando, com a bola junto à parte de dentro do pé, o jogador se confronta perante o destino. É a nudez total.
Talvez tenha razão. Mas há um pormenor importante a ter em conta. Para o André a “essência” revela-se em situações-limite. Pode ser boa, pode ser má, é conforme. Ora, a natureza do homem é sempre má. Precisa das rédeas da educação. O que o campo mostra não é alma descarnada, mas o alcance, a eficácia, do domínio que temos sobre a nossa besta interior.
O que o André quer mesmo dizer é que, debaixo de fogo, tendemos à selvajaria. Aí sim há verdade; e há sangue.
E vem isto a propósito do mercado de jogadores. Essa bizarria que, por ser aceite, não deixa de ser bizarria. Neste caso é o dirigente — e não o jogador — quem se revela. Não no relvado, não durante o jogo, não na época desportiva. Mas nos corredores, no intervalo, no defeso.
Um teatro de sombras. Um teatro no qual Rui Costa hesita, feito Hamlet entalado entre a dívida e a dúvida. Como quem sabe o que não devia fazer, mas faz.
Consideremos Florentino. Rui Costa não tem coragem de vendê-lo com frontalidade. Lá no fundo, sabe que estaria a cometer uma vileza. Sabe que há ali qualquer coisa que não se vende. E então vem o ruído. A névoa. A gestão das expectativas. Aquela operação lenta de anestesia que fabrica, na cabeça do adepto, a ideia de que tudo é natural, indelével; uma questão técnica. Quando na verdade é só errado.
Quando se trata de mediocridades como Kökçü — e perdoem-me os ingénuos — a coisa vai para um canto de página e puf: Besiktas com ele. Com Florentino não. Florentino é empurrado aos poucos. Com recados, subtileza, títulos de jornal que parecem escritos por mordomos. Com jeitinho. Coisas do tipo: “Barrenechea, Manu Silva e Florentino — três homens, um destino.” Ou os mais frontais: “Florentino pode sair já para a semana.”
E porquê Florentino? O que tem este rapaz de tão especial?
Carmen Mandato - FIFA
Vou dizer-vos: é o nosso Edgar. O do Rei Lear. O filho legítimo. O herdeiro traído. Saiu, andou perdido e regressou de peito limpo, redimindo a linhagem e salvando o que pode ser salvo. Quando joga, é daqueles que se lembram do que é o Benfica. Nem sempre brilha, verdade, mas padece daquela tragédia interior que só os da casa carregam. E desses, que não são assim tantos, o tempo trata depressa.
O drama do Benfica é este. Em vez de se olhar para dentro, olha-se para fora. Em vez de se olhar para as reservas, folheia-se o catálogo do Mendes: um homem incapaz de se comover com lealdades antigas, atento apenas a ganhos futuros. E Rui Costa, em vez de andar em reuniões com o Edmund desta comédia, a ver se encontra maneira de trazer João Félix, devia olhar para o Benfica e procurar onde está o novo Félix. Ou então no campeonato português, nas segundas ligas, no Barreirense! Era assim que se fazia.
Mas não. Os dirigentes do Benfica andam entretidos com delírios milionários. Passam semanas atrás de jogadores impossíveis, sonham acordados. E depois, invariavelmente, perdem. Perdem sempre. Perdem para clubes que, sabe-se lá como, têm dinheiro a sério. Daquele com cheiro e com sangue. Como o Atlético de Madrid, que aparece sempre no fim, com a mala cheia de notas e aquele ar de quem já sabia de tudo desde o princípio.
Tenho para mim — e é só um pressentimento — que Rui Costa achava que podia repetir o milagre Aimar. Que bastava aparecer — ele, Rui Costa — como em tempos foi. Com o número 10 ainda a brilhar-lhe nas costas. Como se isso bastasse. Mas aí está o engano. Aimar sabia quem era Rui Costa. Aimar lembrava-se. Almada não. Almada está-se nas tintas. Thiago Almada olha para Rui Costa e só vê um fato cinzento a dizer umas coisas e a dar uns apertos de mão.
É um erro duplo. Primeiro: acreditar que a memória é eterna. Segundo: achar que qualquer Almada traz dentro dele um Aimar. Ora não traz. Não pode. Porque Aimar era um dos raríssimos do ofício. Um jogador com pensamento. Um jogador que usava t-shirts dos New Order!
Com a venda do Carreras, os jornais rejubilaram: escreveu-se até que, para os espanhóis, o Benfica é uma mina de ouro, um exemplo de gestão, um caso de estudo. Puro engano. O que se passa na Luz não é gestão. É a delapidação do seu bem mais precioso: o benfiquismo. O amor à camisola.
Florentino é melhor no Benfica. Mas o Benfica também é melhor com Florentino. Porque os que crescem connosco, se forem amados, também amam de volta. Também nos salvam. São esses os jogadores que arriscam partir a perna.
O André tem toda a razão. É mesmo em campo que o carácter se revela. Lembram-se do Tavares? Aquele que veio do Boavista em 1994? Aquele que ficou isolado contra o Baía e... encolheu a perna? Naquele gesto — ou na ausência dele — jogava-se a vida, jogava-se a morte. Calhou morte. Perdemos. Tavares não era dos nossos. Florentino é.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.