O “projeto” Benfica District tem tudo o que de pior existe no urbanismo contemporâneo: betão, padronização e função. Um edificado em Helvetica, tamanho 12. Um delírio imobiliário com uma águia e uma roda de bicicleta como selo de autenticidade. Esta direção do Benfica quer tudo. Mas não sabe o que isso é. Nós, os sócios, queremos tudo: mas o nosso “tudo” é, afinal, outra coisa. É o Benfica a jogar como nos tempos de Eriksson. Bola no pé. Sempre ao ataque
Ainda o eco das declarações de Noronha Lopes não se dissipara, já o comunicado da Direcção do Benfica aterrava nas secretárias das redacções. O que estava em causa era aquela coisa em forma de delírio que, em atenção às necessidades da filial Sport London and Benfica, alguém resolveu chamar Benfica District. Um nome tão saloio quanto trágico.
Mas que disse Noronha assim de tão grave? Disse o óbvio. Perguntou como seria financiado o projecto; que entidade do grupo Benfica o assumiria; que contrapartidas seriam exigidas; e qual a viabilidade de construir um centro comercial ao lado do... — calma..., esperem..., aqui vai: ...maior centro comercial de Portugal (!).
Mas depois veio a frase fatal. Filipe Anacoreta Correia, o Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, deixou-a cair como quem revela o poliéster que forra o interior da cartola de um ilusionista: “de momento trata-se apenas de uma noção, de uma ideia, de um vago conceito que um dia será um projecto.” Ui… E então Noronha concluiu o que havia a concluir: aquela apresentação faraónica com o Presidente da Câmara, Ministros e projecções de slides em esteróides era, afinal, “uma mão cheia de nada”. Com o pequeno acréscimo de uma informação perturbadora: Jaime Antunes, Vice-Presidente para o Património, que saiu há seis meses, disse que não fazia ideia do projecto que estava a ser preparado há dezoito. Eis a arte da prestidigitação institucional em todo o seu esplendor: seis meses de silêncio sobre dezoito meses de planeamento.
Temos, pois, uma manobra eleitoralista. Mal pensada. Mal cozinhada. Mal partilhada com os sócios. E, pelos vistos, sem garantias de aprovação camarária. Mas como se atreve alguém a dizer tal coisa? Vai daí, a Direcção, ferida no seu orgulho de projeccionista de slides, defendeu-se, de pronto, com a celeridade que não teve quando perdeu a final da Taça. Aí, demorou dois longos meses a reagir. Agora, bastaram dois parágrafos de Noronha para se pôr a disparar à maluca. Há nome para isto em português: chama-se campanha eleitoral.
E o que disseram? Disseram que em 2001 João Noronha Lopes se opôs à construção do novo estádio. Que já nessa altura se opunha ao arrojo, à ambição e à modernidade. Palavras insufladas para esconder ideias vazias: arrojo; ambição; modernidade. Como se crítica fosse o antónimo de progresso. Como se todo o conservador fosse um troglodita. Como se todo o benfiquista exigente fosse um traidor.
Mas essas categorias não nos servem. O que está em causa é benfiquismo. Se Noronha se opôs em 2001, fê-lo por isso. Por ser benfiquista. A mesma razão que levou Diamantino, num serão televisivo, aqui há dias, a confessar que também torceu o nariz à demolição do lugar onde, em tempos, brilhou. Uma demolição que lhe torcia a alma; como a todos nós. Mas lá se anuiu. O Benfica não podia ficar de fora do Euro, dizia-se. O Benfica não podia dizer não ao futuro, dizia-se. Até hoje, nem o mais contundente dos anti-vieiristas foi capaz de articular isto: o pior de tudo o que Vieira fez (porque irrecuperável) foi mandar abaixo o Estádio da Luz. É a alegoria mais eloquente do seu consulado. É duro, mas só aqui entre nós que ninguém nos ouve: fomos enganados.
Por isso, quando me falam em “padrões de conforto”, experiências imersivas ou nas regras da FIFA, eu só penso: Fuit Ilium.
Aquilo que se ergueu em 2003 é uma sombra que escurece o que em tempos estava iluminado, a nossa verdadeira casa. Tem a ver com versos, amigos. Uns versos que os Ultras ainda entoam, como se quisessem acordar o gigante que alguém, um dia, ousou derrubar:
“Estádio da Luz, o maior de Portugal / Tua beleza real / Dá-te um valor tão profundo.“
O Estádio da Luz — o verdadeiro, o único — era um orgulho muito nosso. Os rivais papagueiam que o Benfica era o clube do antigo regime. Mas o Estádio da Luz era a prova viva do inverso. Ao contrário de outros, não beneficiou de ajudas públicas para o construir. O Benfica teve de se financiar sozinho. Um empréstimo bancário com o aval pessoal dos dirigentes. Uma obra popular, nascida da nossa carne e dos nossos bolsos. Feito com o empenho dos sócios. Com o seu tempo. A sua dedicação.
Diga-se o que se disser de Vale e Azevedo — e será sempre pouco, amigos, sempre muito pouco — nunca lhe passou pela cabeça demolir o estádio. Era picareta, era ardiloso, mas era benfiquista. O mesmo não se pode afirmar do que veio a seguir: o Vieirismo, um sistema que fez de Vale e Azevedo o espantalho ideal para justificar duas décadas de paparrotice e charlatanaria. Como se o simples facto de lhe ter sucedido conferisse legitimidade eterna. Como se antes dele só existissem escombros. Naquele tempo, bastava fazer o contrário de Vale e Azevedo para ter razão. Transformou-se o Benfica noutra versão de si mesmo. Um espelho baço da liderança de Pinto da Costa. Que, por trás de palavras como “arrojo” e “ambição”, ousou destruir um templo para erguer em seu lugar uma coisa anódina, genérica, cinzenta, literalmente igual a outros estádios de outros clubes. Essa sim, uma verdadeira obra de regime. O de Vieira e da especulação imobiliária. Desde 2003 que chamar-lhe “Luz” é um insulto. O Estádio da Luz não existe.
Querer ampliar o que não existe é martelar no erro. O “projecto” Benfica District tem tudo o que de pior existe no urbanismo contemporâneo: betão, padronização e função. Um edificado em Helvetica, tamanho 12. Um delírio imobiliário com uma águia e uma roda de bicicleta como selo de autenticidade. Um reflexo automático desses escritórios de arquitectura que se esqueceram de uma verdade simples, que os Ultras ainda guardam e cantam na sua sabedoria: o que faz uma casa é a beleza. Uma palavra com bê maiúsculo e que se podia encontrar na história que as suas pedras — aquelas pedras — guardavam bem guardada.
Esta Direcção comporta-se com desespero. Quer tudo. Mas não sabe o que isso é. Nós, os sócios, queremos tudo: mas o nosso “tudo” é, afinal, outra coisa. É o Benfica a jogar como nos tempos de Eriksson. Bola no pé. Sempre ao ataque. É ver Félix irmão em campo. Ou Henrique Araújo que, desde a primeira vez que tocou na bola, se percebeu que, se o deixarem, será o novo Nené. É a história que as pedras guardam. Nesses edifícios a que pudemos, um dia, chamar casa.
Nota: Esta coluna vai parar durante Agosto. Voltará em Setembro.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.