Odeio Futebol Moderno

O alvo a abater

O que está em jogo nas eleições do Benfica é o que a urgência das circunstâncias dita. Por razões históricas, objectivas, só há um verdadeiro adversário contra Rui Costa. Tudo o resto é um atraso e um engano

Nas eleições do Benfica só há um candidato que ameaça os interesses instalados. Só um que não deve nada a ninguém. Que não vem do vieirismo nem de qualquer capelinha, e por isso mesmo é tratado como o inimigo público número um. Esse candidato chama-se João Noronha Lopes e é hoje o alvo a abater.

Comecemos por Martim Mayer. O candidato que traz no currículo um avô ilustre, Borges Coutinho, e que vive desse património como o herdeiro perdulário, desbaratando-o como se não houvesse amanhã. Só isso e mais nada. Porque de resto passa o tempo a disparar sobre Noronha. Até de lhe copiar ideias o acusou, dando-se ao trabalho de gravar uns vídeos intitulados “Prémio Copiar Ideias Descaradamente”. Com aquele esmero e aplicação de quem acredita falar a um eleitorado sofisticado que reconhece o genérico final do “Curb Your Enthusiasm”. Acontece que a tal ideia— um director-geral para o futebol — é tão revolucionária como a figura do árbitro. Desde que existe bola que existe alguém a mandar nela. Só Mayer consegue fazer de vanguardista por ter redescoberto a roda. E quando é realmente original, mete medo: “Se cada benfiquista gastar por mês 4 euros, 48 euros por ano com o seu Benfica, o clube teria 500 milhões de euros por ano para investir” disse. Parece que os vejo, como numa ópera bufa: cobradores de fraque, de Melgaço a Díli, perguntando a cada minhoto, a cada timorense — “É benfiquista? Passe para cá o dinheiro.”

Mais tarde, num debate na SIC Notícias, Carlos Janela, o autor da famosa “cartilha” que o Benfica distribuía pelo pessoal do comentário, decidiu promovê-lo a idiota útil do vieirismo. Elogiou-o até à náusea, chegando a decretar que os maiores presidentes da história do Benfica foram Borges Coutinho e… Vieira. E Mayer, o herdeiro que ergue a sua candidatura em torno do avô, que até ensanduícha “Borges Coutinho” no nome de guerra para as redes sociais, calou-se. Nem um protesto, nem uma ruga de indignação. Silêncio e vergonha alheia foram o programa eleitoral daquela noite. E compreende-se: precisa de se distinguir de Noronha, e como ambos são do mesmo mundo de bem-nascidos, só lhe resta atacar para parecer diferente.

Já João Diogo Manteigas prefere a compostura. É civilizado, educado, respeitador. Mas falta-lhe uma razão de existir. Se Noronha já teve um resultado claro em 2020, que sentido faz repetir a mesma marcha com outro maestro? A sua candidatura é um esforço elegante, mas inútil, que só serve para dificultar nas contas finais (e ajudar Rui Costa).

E depois há Cristóvão Carvalho. Aquela figura castiça que surge para provar esta insofismável máxima do imaginário benfiquista: toda a eleição tem o seu Abílio Rodrigues. Mesmo que em ponto pequeno.

Mas o cerco a Noronha não vem só dos adversários. Vem, sobretudo, da comunicação social. Quem assistiu à entrevista no canal Now deparou-se com um excesso de voluntarismo pouco comum num moderador de canal noticioso. O jornalista interrompia-o sem piedade, forçava comparações absurdas entre a “modernidade” do voto electrónico e o “retrógrado” papel. Como se respeitar os estatutos fosse crime de lesa-futuro. A posição é simples: papel é papel, e só se esfuma se lhe pegarem fogo ou for parar à bagageira de um Renault Clio. Isso não é ser retrógrado. É ser rigoroso. Mas esse rigor é sempre selectivo: desaparece assim que se trata de Vieira. Basta recordar na CNN, onde Rui Santos tentou confrontá-lo e acabou a falar sozinho, enquanto Abel Xavier, no papel de cortesão, fazia questão de lhe chamar “Presidente”. Abel Xavier: especialista em meter as mãos pelos pés desde as meias-finais do Euro 2000.

E como se não bastasse a hostilidade, veio a mentira. Sem limite e sem vergonha. Vítor Pinto, subdirector do Record, que ousaria adjectivar de “Pedro Marques Lopes do desporto”, caso o próprio Pedro Marques Lopes não se dedicasse também ao tema, afirmou em directo que Noronha tinha assinado por baixo da auditoria encomendada por Rui Costa. Ora, minutos antes, o próprio Noronha dissera precisamente o contrário: que não confiava nela, por incompleta, reduzida a 50 contratos.

Tudo isto faz parte de uma encenação. A primeira manobra é a falsa bipolarização entre Rui Costa e Vieira. (Leram aqui primeiro o número 15 —quinze. O senhor quinze milhões nunca vai ter mais de quinze por cento). A segunda é esta hostilidade permanente a Noronha, enquanto se promovem candidaturas sem hipótese como se fossem alternativas sérias.

Ora, o que está em causa, amigos, não são os méritos de Noronha. Não é se tem melhores ou piores ideias. O que está em jogo é o que a urgência das circunstâncias dita. Por razões históricas, objectivas, só há um verdadeiro adversário contra Rui Costa. Tudo o resto é um atraso e um engano. Ruído. Nesse sentido, convém que apareça sempre um neto de Borges Coutinho ou um tipo inteligente e articulado: dão jeito, servem para distrair.

Sim, Noronha errou. Devia ter-se candidatado a segunda vez e devia ter contestado o resultado das eleições de 2020. Mas, pela primeira vez em não sei quantos anos, há um candidato que não deve nada a ninguém. Podem chamá-lo o que quiserem, até aquele epíteto foleiro dos hambúrgueres, inventado pelo Pinto da Costa. Mas na verdade é o Hamlet da Luz: alguém que vê a podridão com clareza, o primeiro a agir contra ela e que mais tarde hesitou, ficando vulnerável. Mas até nisso — na vulnerabilidade de quem hesitou, mas também na independência de quem pensa pela própria cabeça — assusta os principados. É que em qualquer tragédia que se preze, mais do que do fantasma do passado, o espectro mais temido é sempre o do homem livre.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.

P.S. Na noite de Sábado morreu o Ivan Ferreira. O homem do design da campanha do João Noronha Lopes. Um tipo muito competente; novíssimo. Nunca o conheci. Estivemos nas mesmas campanhas, nas mesmas assembleias, no mesmo estádio, mas não chegámos a beber um café. O seu talento, a sua generosidade e o seu benfiquismo são, por estes dias, muito saudados. Mas a dor com que a sua morte é sentida pelos seus amigos — alguns meus amigos também — é o que me faz pensar que também o conheci. Às vezes custa-nos a partida das pessoas mais improváveis. Como a deste rapaz de pavilhões e tipos de letra bem escolhidos.

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