Outra das teses que tenho vindo a defender é a que diz que há mais futebol numa Assembleia Geral do que em noventa minutos de relvado. Dir-me-ão que exagero. Que perco tempo com quimeras. Pois só quem viu o Chelsea x Benfica de terça-feira me poderá dar razão. Aquilo não foi futebol. Aquilo não foi Benfica. Foi um suicídio. Do pé direito de Ríos para o fundo das nossas próprias redes: um suicídio com bola. O Vítor Pinto tinha razão: Richard Ríos não dura uma época.
Mas no Sábado que passou, 27 de Setembro, houve bola. Bola sem bola. Como um clássico em duas mãos. Um derby; ou pior: uma guerra civil. Em cada mão um ringue. Não era Benfica contra Porto, nem Benfica contra Chelsea. Era Benfica contra Benfica. Era o clube a fazer aquilo que faz melhor desde que Manuel Damásio foi eleito: comer-se a si próprio, como Saturno devorando os filhos.
Na primeira parte — chamemos-lhe assim — discutiu-se o Relatório e Contas (chamemos-lhe também assim). Um pedaço de papel indigente. Um pedaço de papel com um destino. Se assim não fosse, como se explica que a votação estivesse a decorrer enquanto se discutia sobre o assunto? Quero dizer: parece-me elementar que, num sufrágio, seja ele sobre o que for, a votação aconteça no final da discussão sobre os méritos da causa. Mas não. É como se a Mesa da Assembleia Geral já soubesse o resultado de antemão.
Ora, o relatório não dizia nada da Benfica Multimédia, nem da Clínica, nem dos Seguros, nem do Parque. Nada das empresas que usam o nome do clube para facturar. Nem do Benfica District ou da Benfica Rádio, que, pelos vistos, já tiveram investimentos. A ilusão de lucro vinha apenas da venda sacrificial de João Neves. E, ainda assim, contas feitas, o fluxo de caixa era negativo. Confesso que não sei o que é fluxo de caixa. Mas estava negativo. Queriam aprovar? Foi chumbado. Golo.
Veio então o lance que ficará para a memória. Vieira já tinha entrado. Atrás de si vinha um grupo de — digamos — “amigos”. Quando chegou a vez do antigo presidente falar, foi vaiado. Dois terços da assembleia levantaram-se para sair e uns quantos ficaram no fundo da sala a cantar. Sabem quem é Luis Filipe Vieira? É preciso contar tudo de novo? Posto isto, será assim tão surpreendente?
Diz a sabedoria que quem canta seus males espanta. Mas Vieira permanecia no palanque, com aquele sorriso de quem acredita que o clube lhe pertence. Com aquele ar de quem ainda não se apercebeu que já ultrapassou o ponto-sócrates — ou o limiar a partir do qual deixamos de perceber o mal que infligimos a nós mesmos. O resto dos candidatos, liderados por Noronha, tentaram falar com a presidência da mesa, certamente para procurarem uma saída para o impasse. Vieira desce na sua direcção. Os “amigos” irrompem pelo lado esquerdo e a verdadeira confusão instalou-se. A sessão não foi interrompida por causa dos assobios, como se disse, mas por causa da exuberância de quem quis prestar auxílio. Foi assim, com força física e impunidade, que o vieirismo se fez. E se manteve no poder. Isso não é uma consequência. É uma causa. E é graças a isso que no poder continua, disfarçado de Rui Costa.
Intervalo (chamemos-lhe assim).
A sessão só retomou depois do almoço. Vieira lá falou, não disse nada de relevante, e, como o morto que regressa ao jazigo, saiu. Foi o fim da primeira assembleia. E o início da segunda.
O que estava agora em causa era o regulamento eleitoral. A Mesa apresentou-o como fechado, um plebiscito de sim ou não, sem discussão, sem contributos, sem hipótese de melhorar. Quase todas as intervenções apontaram o mesmo. Os sócios queriam deliberar. Nada feito. Ai é? Outro chumbo. Outro golo. Mas desta vez com travo a Richard Ríos. É que seria preciso recorrer ao regulamento de 2021 e adaptá-lo aos novos estatutos. Uma tarefa da Mesa, sem a participação dos sócios. A mesma Mesa que é presidida por um sujeito que, a semanas das eleições, ainda não disse se se candidata.
E então desceu o nevoeiro. Como no filme de Carpenter. Um nevoeiro denso, pegajoso, televisivo, a entrar por portas e janelas, misturando aplausos com vaias, democracia com alarvidade, confundindo os homens.
Como em qualquer jogo, os lances polémicos foram escalpelizados pelos especialistas do costume. E, como sempre, as interpretações divergem. Falaram em “grupos radicais”, “acções concertadas”, “assembleias manietadas”. A manta de retalhos oficial foi costurada ainda no Sábado pelos comentadores, e no Domingo por Jaime Antunes, Mayer, Cristóvão Carvalho, Vieira, Rui Costa; até os jornalistas ajudaram, com aquele tom insinuado de quem formula uma pergunta com a resposta lá dentro. Mayer, na sua tibieza habitual, disse que Vieira foi vítima do ambiente. Cristóvão repetiu absurdos. Vieira, amplificado até à náusea, evocou Benítez, o candidato de 2021 — um homem com a ferocidade de um professor de Educação Visual de transferidor em punho — como terrorista. Bem como o inofensivo movimento Servir o Benfica. Sugeriu ainda uma iminente invasão ao Seixal. Se em Vieira o Porto foi um método, o Sporting é o destino.
No meio da bruma, porém, houve quem dissesse o que havia a ser dito, chamando os bois pelos nomes. Noronha Lopes, é justo dizê-lo, fez isso. Mas o ponto não é Noronha. Nem Manteigas, que também o fez à sua maneira. O essencial é isto: a verdade, quando aparece, é quase pobre de tão simples. Um sócio é um sócio. Outra coisa é outra coisa.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.
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