Cidadão Noronha
Segunda-feira, no mais doloroso gesto que me foi dado ver no pequeno ecrã, em pleno horário nobre, Noronha volta à televisão. Munido com sete anos de declarações de IRS debaixo do braço, o Cidadão Noronha esvaziou-se. Deu o que tinha
Músico
Segunda-feira, no mais doloroso gesto que me foi dado ver no pequeno ecrã, em pleno horário nobre, Noronha volta à televisão. Munido com sete anos de declarações de IRS debaixo do braço, o Cidadão Noronha esvaziou-se. Deu o que tinha
Tudo começou numa soalheira quinta-feira outonal, algures em Lisboa. Nessa manhã de 9 de Outubro, o cidadão João Noronha Lopes acordou razoavelmente bem-disposto. Tomou o pequeno-almoço, barbeou-se, abotoou a camisa. Mandou uma fotografia aos netos. Despediu-se da mulher e dos filhos e saiu de casa. Ia participar numa dessas reminiscências de afabilidade e brancura que a televisão insiste em chamar programas da manhã.
Os dias anteriores haviam sido bons. Na terça-feira apresentara as listas dos Órgãos Sociais para as eleições no Sport Lisboa e Benfica. O grupo era de tal nobreza que mais parecia uma versão vermelha e branca da Boulé dos Quinhentos, o conselho da democracia ateniense. Nomear um só nome faria corar de vergonha o XXV Governo Constitucional e todos os que o antecederam (está bem: Bagão Félix.) No dia seguinte apresentara o programa para o mandato. O sol brilhava e Lisboa também.
Dizia que seguia para TVI. A conversa com Cristina Ferreira e Cláudio Ramos era o corolário cor-de-rosa-choque de uma semana a cavalgar as doces vagas da boa fortuna. No estúdio da Venda do Pinheiro, debaixo daquela iluminação imperdoável, naquele registo forçado-doméstico tão querido de toda a sala de estar portuguesa, entre fotografias de infância e as confissões de inocência futebolística de Cláudio Ramos, Cristina lançou a frase, numa presciência que, vista depois, pareceria o esconjuro de uma sacerdotisa de plasticina:
— “Essa gestão ninguém lhe tira no seu passado profissional! Quem geriu tanto restaurante...”
E então, o Cidadão Noronha sai do estúdio e é emboscado. Os salteadores eram repórteres e nos microfones o escudo da TVI. Embriagado ainda das melífluas seduções matinais, de sorriso zonzo no rosto, vê-se subitamente cercado por perguntas sobre o Vira Frangos: uma cadeia de restaurantes da qual é sócio minoritário e onde, até ao fim desta epopeia eleitoral, todo o benfiquista sério deveria almoçar, jantar e, se possível, confessar-se.
As imagens seriam usadas mais tarde, nesse dia, no telejornal da dita estação. A infame peça jornalística que Bernardo Ribeiro, do Record, descreveu com a palavra justa: “escarro”. Sandra Felgueiras — incapaz de pronunciar “Noronha” sem abrir o o, como em “porta” — narrava uma composição tão insidiosa quanto eficaz. A mensagem era simples e letal: o gestor de mérito e excelência era afinal uma fraude e queria vir para o Benfica receber — imagine-se — um salário. Porquê? Porque a tal empresa dos frangos apresentava prejuízos de dois ou três milhões. E uma outra só tinha lucros de trinta e tal mil. Não interessa que o Vira Frangos estivesse num processo de crescimento e afirmação de conceito. Nem que o dinheiro fosse dos próprios fundadores, investido sem bancos nem padrinhos.
Portugal dá-se mal com a iniciativa privada. O português dá-se mal com o sucesso, porque o sucesso alheio recorda-o da sua miséria. Quem encomendou a peça sabia-o. E quem a montou também. Aquele tic-tac nervoso de Missão: Impossível, os rasgos de som repentinos a marcar a perfídia imprevisível de um vilão de recursos imponderáveis, era demasiado irresistível. Tudo obedecia à gramática da infâmia.
E o que fez o Cidadão Noronha? Fugiu? Escondeu-se? Entrou em blackout como se diz, no futebol, desde que Pinto da Costa inaugurou o expediente? Não. Foi ao estúdio defender-se. (Aqui o detalhe é sórdido: estava lá sem saber do teor do artigo que iriam passar sobre ele.) Irritou-se, com razão. E disse quase tudo. Faltou —pasme-se — dar nomes de empresas. Perguntaram-lhe, e ele calou. (Bastaria ir ao linkedin do homem para verificar que há mais que só McDonalds no seu percurso.) — “Bem, devem existir acordos de confidencialidade, ou lá o que é”, pensaria qualquer pessoa com dois dedos de testa. Mas o português só tem meio: meio dedo de testa e ressentimento no corpo todo.
As reacções não tardaram. Nem a pusilanimidade em roda-viva:
— “Ele nem sabe o que é uma start-up!”
— “Dois dias, três dias para esclarecer?, tem de ser já!”
— “Vai receber salário do Benfica?! Rasgarei minhas vestes!”
Como responderia o Cidadão Noronha a isto? Como poderia ele explicar, por exemplo, que receber um salário pelo trabalho que se faz é — como dizer? — normal? Que essa verdade elementar ressoa desde o Velho Testamento, gravada na pedra e na sensatez dos séculos? E que essa história do Vieira e do Rui Costa trabalharem de graça é uma filantropia postiça, porque de algum sítio terão de receber? Em Portugal acha-se sempre que o talento é pão de si mesmo. Se remunerar músicos, actores, escritores, artistas em geral, é aceite com desconfiança, por que deveríamos nós permitir que se pague aos presidentes do Benfica, artistas do betão e da melancolia?
Bem. Só poderia responder de uma maneira. Foi o que fez. Segunda-feira, no mais doloroso gesto que me foi dado ver no pequeno ecrã, em pleno horário nobre, volta à televisão. Munido com sete anos de declarações de IRS debaixo do braço, o Cidadão Noronha esvaziou-se. Deu o que tinha. Deu o que era. Para se tornar noutra coisa. Um homem purificado pela provação.
Como Ulisses, como Sansão, como Édipo, como Job, o homem que perde descobre-se invencível. A jornalista ficou sem chão. E nós também.
Só no Benfica, meus caros. Só numa instituição que é maior que o pedaço de terra que lhe calhou como morada fiscal. Anda aí o Montenegro às turras nos labirintos da Spinumviva e diz-se que é o Primeiro deste país. Mas o Cidadão Noronha, naquele gesto inaudito de despojamento, tocou num milagre reservado apenas aos inocentes e aos loucos. E o país, de boca aberta, nem percebeu bem o que estava em causa. Ali, naquele estúdio, cumpria-se um ritual de sacrifício. Naquele instante o último foi o primeiro.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.
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