Odeio Futebol Moderno

Rui Costa, o destruidor de Ferraris

O que o resultado da primeira volta das eleições do Benfica revelou é simples e terrível: perante Rui Costa, qualquer adversário seria sempre o usurpador, o vilão. Noronha é o irmão mais velho da parábola: o que ficou em casa; fiel, sensato e previsível, mas a quem ninguém dá um abraço, nem mata o vitelo gordo e que, pelo contrário, todos castigam por ser lúcido

Diz a ciência política que, quando muitos saem de casa, é porque o poder está em perigo. É o sinal dos tempos, o rumor da insurreição. Mas no Benfica, tudo acontece ao contrário. No Sábado, os sócios saíram de casa aos milhares, em fervor devocional, para ir votar (mais gente do que em noventa e oito por cento dos municípios do país, nas últimas autárquicas; um país dentro do país; maior que o próprio país). Cantava-se, discutia-se, ofereciam-se finos a desconhecidos. Uma revolução às avessas.

O benfiquista que, nesta primeira volta, votou na continuidade, convencido de que participava, agia e decidia, apenas confirmou as paredes do cubículo em que se habituou a viver. E votou como quem fecha uma janela. O tal voto record não seria, então, esse inequívoco sinal de vitalidade democrática, mas antes uma prova de clausura. Todos se mexem, mas ninguém sai do sítio. A verdadeira viagem, a que implicaria risco, mudança e contacto com a realidade, ainda está por cumprir.

O que explica isto?, perguntará o meu amigo que me lê. Não se sabe. Não se explica o Benfica. Há coisas que não se pensam, sofrem-se. Como compreender que um presidente sem títulos, sem pulso, sem voz, continue a ser o eleito da maioria? Presumir-se-á que é da sua naturalidade. Ponderaremos aquele olhar tristonho, o cabelinho lambido que sobrevive há trinta anos, e concluiremos, talvez, que o benfiquista não vota num presidente, mas na sua própria juventude. A resposta à inquietação é parecida com esta, sim, mas talvez seja um pouco mais funda.

Explico. A hermenêutica mais popular da parábola do Filho Pródigo é a que se centra no perdão do filho que regressa a casa. Nada contra. Mas, para haver perdão, teve de haver pecado; e dos complicados. Sejamos sérios: o filho foi um estroina do piorio; exigiu que lhe antecipassem a herança, espatifou tudo, e voltou quando já não tinha onde cair morto. Ora, o verdadeiro protagonista da história é o pai. São os seus braços abertos que verdadeiramente importam. O pai é o milagre e a ruína. E é aqui, leitor, neste fragmento novo-testamentário, que reside o busílis da questão: o amor sem juízo do pai. O amor sem juízo do benfiquista.

O voto em Rui Costa é como o carro novo que o pai do estroina lhe continua a dar, depois de ele ter espatifado o décimo brinquedo. Só que este brinquedo, sabemos, é um Ferrari — o próprio Jorge Jesus o disse. O erro de Rui Costa esfuma-se, assim, no amor que o benfiquista tem por ele. E, como ama demais, o benfiquista vê de menos. Esquece-se das vitórias. Agarra-se à lembrança do miúdo com o número 10 e o rosto lavado de melancolia.

Porque o pai que ama perdoa até o filho que volta só para abrir uma empresa no quintal da casa paterna. E assim se passaram quatro anos, nos quais o grande legado — preparem-se para o sarcasmo, que nem é meu, é de Vieira — foi o bicampeonato do Sporting. Rui Costa é um homem que é um milagre de conservação moral: envelhece e continua inocente.

Foi preciso um portista (um portista, vejam bem!), Rodolfo Reis, vir dizer o que nenhum benfiquista ousa murmurar: “para os sócios do Benfica, ganhar, perder ou empatar é a mesma coisa.” E é mesmo. Porque o Benfica, esse velho império do sagrado, deixou de medir a eternidade nas pernas que marcam golos, passando a medi-la em olhos que vertem lágrimas.

O que este resultado revela é simples: perante Rui Costa, qualquer adversário seria sempre o usurpador, o vilão. Noronha é o irmão mais velho da parábola: o que ficou em casa; fiel, sensato e previsível, mas a quem ninguém dá um abraço, nem mata o vitelo gordo e que, pelo contrário, todos castigam por ser lúcido.

Em todo o caso, no Benfica, a história ainda está em aberto. Na parábola, o irmão mais velho fica, fiel, à porta da festa. É como se o festim ainda não tivesse terminado, e ainda haja tempo para o bom irmão entrar. Falta-lhe a última volta. Quem sabe, o benfiquista poderá ainda redimir esse irmão; o que ficou a cuidar das coisas em vez de andar a espatifar Ferraris.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.

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