Odeio Futebol Moderno

Uma questão de benfiquismo — o capítulo final

O benfiquista médio que olha para Rui Costa e vê redenção, deveria era ver reincidência. O seu consulado é esse momento primordial em que a pureza e a culpa se beijam na boca. E o Benfica, ao lado disso? Perde. Perde sempre. Como tinha perdido. Como perdeu. Como perderá. Mas este benfiquista, este lesado do Vietname, dos anos 90 em diante, assimilou que, às tantas, o Benfica seria mesmo assim

Tudo começou com Futre. Jorge de Brito, o último dos grandes patriarcas do benfiquismo histórico, num acto que ainda hoje não sabemos se de gestão, se de paixão, quis dar ao Benfica um relâmpago de opulência e comprou um deus em segunda mão. O Benfica não aguentaria o rombo financeiro e a direcção não se manteria em funções durante muito mais.

E chegou 1994. Um ano ruim, um ano de presságios.

Morreu Senna, morreu Cobain, e no Público chamaram “rasca” a toda uma geração. Lisboa encheu-se de dinossauros de borracha e seria esta a metáfora perfeita para o que viria a suceder. Elegemos Damásio e, nesse momento, o Benfica perdeu o pudor e começou a ter vergonha da sua própria grandeza.

Seria fastidioso seguir em detalhe o fio da história de então até hoje. Basta dizer que se sucederia Vale e Azevedo, depois Luis Filipe Vieira, e que o mandato de Manuel Vilarinho, entre um e outro, serviria apenas como paliativo numa espiral vertiginosa de má gestão, indigência, e, sobretudo, de delapidação do benfiquismo como o conhecíamos. Porque isto é o que verdadeiramente interessa para o nosso caso: o Benfica deixou de ser um clube para se tornar numa saudade.

É deste benfiquismo degradado, deste benfiquismo resignado à mediocridade, que o Benfica hoje padece. E que teima fazer de um clube monstruoso uma coisa assim-assim.

É esse benfiquismo que se personifica em Rui Costa. Ele é o alfa e o ómega da mediania, o produto e o cúmulo da decadência. Acompanhem-me no raciocínio: enquanto jogador foi o filho sacrificado — a vítima do “Benfica que tem de vender para tapar buracos” —, durante o exílio forçado legitimou lunáticos como Vale e Azevedo e, quando finalmente regressou, à vigésima quinta hora, saltou quase directamente para o dirigismo. Enquanto tal alinhou-se com o regime de Vieira, e o mesmo halo de santidade que o protegia como jogador seria o mesmo que o anestesiaria como dirigente. Finalmente na presidência, cumprir-se-ia o círculo perfeito: o mito corporativo sentar-se-ia no trono, como o holograma de um passado idealizado que nunca teria existido. Lamento, mas é excessivo chamar velha glória a um futebolista que passou doze dos dezassete anos da sua carreira sénior noutros clubes.

Ora, o benfiquista médio que olha para Rui Costa e vê redenção, deveria era ver reincidência. O seu consulado é esse momento primordial em que a pureza e a culpa se beijam na boca. E o Benfica, ao lado disso? Perde. Perde sempre. Como tinha perdido. Como perdeu. Como perderá. Mas este benfiquista, este lesado do Vietname, dos anos 90 em diante, assimilou que, às tantas, o Benfica seria mesmo assim. Por isso não será surpreendente ouvir de lendas intocáveis como Humberto Coelho, vice-ainda-não-se-sabe-bem-de-quê na lista de Rui Costa, que o Benfica é um clube ganhador porque vence nas modalidades amadoras ou no futebol feminino. Chega até ser delirante assistir ao tipo de respostas que o benfiquista devoto de Rui Costa dá, quando confrontado com os nossos fracassos.

— A formação não está a resultar. Simples: “Apostar na formação não é ganhar títulos!”

— O Benfica gastou mais e ganhou menos que os rivais entre 2021 e 2025? Não tem problema: “Rui Costa é o homem certo, e quem não estiver contente que mude de clube!”

— O passivo aumentou cento e cinquenta e sete milhões em quatro anos. Essa agora: “Força, Rui Costa!”

“Força, Rui Costa!”, eis a divisa da resignação, o grito manso de um povo que desistiu de ser grande.

A verdade é que tivemos oportunidades para mudar isto. Não muitas, mas tivemos. Em 2020, Noronha avançou e diz-se que perdeu. Mas agora há outra oportunidade. As probabilidades parecem todas contra ele, mas ele não desiste, e o Benfica tem um historial de surpresas. Noronha não é um herói dos relvados, nem nunca pretendeu ser, é um cavalheiro como Vieira de Brito, Borges Coutinho, João Santos ou Jorge de Brito. Um benfiquista de carne e osso, como há muito julgávamos terem deixado de existir. E tem este defeito imperdoável: ao ambicionar um Benfica grandioso, expõe a ferida da nossa pequenez.

Ainda ontem via o Paneira na televisão. Naquela expressão fechada, vindo directamente dos campos pelados do Portugal telúrico, habitava o anti-Rui Costa: rijo, frontal, rosto limpo, insubmisso. O jogador que foi inexplicavelmente corrido por Damásio, que galgava aquele lado direito e, depois de aplicar sempre a mesma finta curta, levantava a bola para ir parar à cabeça do Rui Águas. Paneira disse — e quem tem ouvidos que ouça:

“Quando nos candidatámos em 2020 queríamos a mudança. Em 2025, o pouco que mudou foi: o Sporting ganhou oito títulos, tem mais 166% de vitórias que o Benfica, o Porto mais 133%. O Benfica tem só mais um troféu que o... Braga. É muito pouco. Os sócios têm de decidir. Os números falam por si. Se isto for suficiente, eu sou o primeiro a fazer campanha pelo Rui Costa.”

Ora, se ainda houver no benfiquista um vestígio de amor-próprio, um resquício que seja de consciência — essa coisa rara e quase ridícula — então há esperança para o Benfica. Pode ser que, então, no próximo Sábado, 8 de Novembro, vote contra o medo, contra a acomodação, contra a idolatria de um nome, contra uma cultura de mediocridade. Pode ser que vote a favor de uma ideia de responsabilidade e exigência. A favor dessa ideia antiga e essencial de que o Benfica pode ser, não o maior, mas o melhor. Melhor do que é. Melhor do que todos. Melhor do que Portugal.

Exactamente como sempre foi.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt