Algures na Nacional 105 vive um clube de futebol. Na realidade, vivem muitos. Algum curioso já terá, com certeza, atentado no fenómeno: o Vale do Ave é a depressão geográfica portuguesa com maior abundância de bola por quilómetro quadrado. É impressionante — e é um prodígio: só nos vinte e cinco quilómetros de país têxtil que ligam Santo Tirso a Guimarães, entre históricos e clubes de primeira divisão, contam-se Tirsense, Aves, Vizela, Moreirense e Vitória de Guimarães. Fora da Nacional, mas dentro do mesmo vale, há ainda o Rio Ave, o Varzim, o Trofense ou o Famalicão; e, se quisermos esticar o mapa, incluímos o Paços, ali mesmo ao lado.
Fica claro que há um mistério que une o fio de algodão das bobinadeiras da indústria baixo-minhota ao capão dos esféricos que saltitam nos relvados. Alguma coisa que, no caso do Moreirense e dos quadrados verdes das suas camisolas, a urdidura dos tempos vai teimando em provar: que o futebol, naquelas redondezas, tem alguma coisa de sanguíneo.
Fundado em 1938, o Moreirense nasceu da transpiração e do sarranho dos operários da antiga Sociedade Têxtil da Cuca, ali mesmo em Moreira de Cónegos, lugar de carvalhos, teares e pedregulhos, pão-de-ló e Domingos à tarde no pelado. Digo-o com conhecimento de causa: o Moreirense é um caso de família. De avós, pais, tios, primos e outros tantos parentes; numa aldeia assim pequena seria difícil não o ser.
O meu avô foi um dos fundadores. O meu pai, o primeiro capitão das equipas sénior aquando da refundação do clube. Sim, houve uma refundação. Todo o Aquiles tem seu Heitor. Todo o Moreira tem seu Vizela. Na segunda metade dos anos 40 dispararam-se armas de fogo num jogo contra o grande rival (uma prática que, contra o Vizela, tornar-se-ia regra). A direcção demitiu-se, arrumaram-se as chuteiras, fecharam-se os cacifos.
Quase duas décadas depois, em 1968, os estudantes de Paris aboliam os professores. Em Moreira de Cónegos, Maio cumpria-se dando a braçadeira de capitão ao jogador mais novo; o meu pai que, com 19 anos e dois de faculdade, seria o único capaz de se entender com os árbitros. Jogava-se na Segunda Regional de Braga e acabavam-se os jogos a fugir pelas couves para não se ser agredido à conta do mau perder alheio. Como em Celeirós: jogo empatado a um, chuva, lama, reviravolta 1-2, e fuga geral para os carros, sem banho nem troca de roupa.
A vocação para as grandes narrativas corria-nos no sangue. O futebol era o desporto, mas o drama também, numa atracção que se tornaria irresistível.
Veja-se o meu tio Jorge, defesa central que, das camadas novas do São Martinho do Campo, saltou para o Moreirense, apenas para o capitanear durante umas escassas sete ou oito partidas.
Logo a abrir, contra o Dumiense, é expulso e leva quatro jogos de castigo. Reza a lenda que um jogador de Dume agrediu o colega Peneira; Barbosa de Matos não se deixou ficar, insultou o árbitro e a equipa teve de abandonar o campo escoltada pela G.N.R.
Jogo contra o inimigo Vizela, no velho Agostinho Lima. O quadro marcava 2-2. O Vizela podia subir à terceira. O árbitro marca falta para livre directo e faz tudo para que a bola entre. O Moreirense organiza a barreira, o jogador do Vizela chuta para fora, e o árbitro manda repetir. Novo livre: bola na barreira. Repete outra vez. Barbosa de Matos, numa peculiar inversão de papéis, adverte o juiz: “À terceira pode ser que tenha azar, senhor árbitro.” Cartão amarelo por desconsideração. O árbitro lá apita, o do Vizela chuta a bola para fora. E agora? Exacto, terceira repetição. Barbosa, cego, empurra o juiz que cai por terra. No chão, o homem saca do cartão vermelho. Mas Barbosa não se deixa ficar: agacha-se, apanha a cartolina, rasga-a, e, num requinte de arrojo que leva os adeptos visitantes ao êxtase, pisa o que resta do papelão com os travessões da bota direita.
Directores em campo, tiroteios nas bancadas (eu não disse?), a minha tia escondida atrás de um arbusto, e uma velhinha, certamente emocionada pelos acontecimentos, morre ali mesmo, nas bancadas do campo vizelense. O meu tio abandonou o pelado, saltou para o balneário dos da casa para evitar a Guarda, e fugiu dali para fora.
Na Quarta-feira seguinte dirigiu-se a Ronfe. À hora de jantar, diante da mulher e dos filhos do árbitro, mostrar-se-ia arrependido: “Nunca mais voltará a acontecer.” Pois não voltou. Foi irradiado. Noutras famílias partilham-se propriedades; na nossa herdou-se o título de um castigo vitalício.
O Moreirense de hoje, o do estádio Comendador Joaquim Almeida Freitas, presidido por Vítor Magalhães depois de décadas de governo dos irmãos Almeida Freitas — tudo parentela, evidentemente — é um caso à parte. Aquele grupo de operários e lavradores acabaria por dar origem a um microcosmo de resistência portuguesa. Um pequeno clube organizado, de bom futebol e gestão sensata, que é uma metáfora sobre competência discreta, a autonomia da província, a ética do bem-fazer.
É que Moreira de Cónegos, que foi, mais campo menos campo, um pedaço de monte, nunca deixou de ser, mais fábrica menos fábrica, aquele troço de estrada.
Há, certamente, um segredo bem guardado nas águas que serpenteiam aqueles vales. E poderá ter alguma coisa a ver com as descargas de químicos que, durante décadas, as tinturarias da região libertaram para os rios. Ou então com essa voracidade vertiginosa que, desde Camilo, se reconhece no carácter dos que dali vêm: uma fome antiga, uma alegria obstinada, um rapaz que só pensa em jogar à bola depois da Missa. Como Vítor Magalhães, o presidente, sintetizou um dia com uma lucidez que devia constar das Escrituras:
— “O expoente máximo da pequenez.”
Enquanto houver isso o futebol resistirá. Do tamanho exacto da teimosia.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.