Futebol-moderno é Futebol-fantasma: exacto. Refiro-me ao jogo de terça-feira entre Ajax e Benfica. A pátria do passe em movimento e a pátria da bola para a frente. Duas civilizações reduzidas a uma exposição trémula do que já não são. Dois clubes que, um dia, nos fizeram amar o futebol para sempre, não passam hoje de memoriais ambulatórios das suas glórias passadas. Cruijff de um lado, Eusébio do outro. Arquivos com pernas que se arrastam penosamente pelos relvados da velha Europa: não poderia haver duelo mais simbólico do precipício existencial que devora o futebol de hoje: um fantasma de Ajax contra um fantasma de Benfica.
Futebol-moderno é futebol-fantasma porque neste tempo de dissolução da nobreza das formas, o desporto-rei, último reduto da beleza, expressão eurítmica da vocação humana para a grandeza, sucumbiu à ditadura dos números sobre as letras, da técnica sobre o instinto, da máquina sobre o espanto. Resta-nos o simulacro, o espectro. E o tormento, meus caros: o tormento que persegue todo aquele que, como nós, se recusa a deixar a casa maldita entregue às assombrações. Estamos apegados ao cadáver, eis o drama. Por isso vos digo: futebol-moderno é futebol-fantasma.
Futebol-moderno é futebol-fantasma e ver este Benfica a jogar é uma tortura. Diz o meu pai e digo-vos eu. E até quando ganha, é penoso. Até quando ganha com dois grandes golos, é penoso. Os peritos do futebolês-actual poderão tentar codificar o diagnóstico numa daquelas expressões indecifráveis como “dificuldade em penetrar blocos fechados”. Mas a verdade é outra, mais simples e mais cruel, dita entre holandeses de copo na mão, ali mesmo junto às roulottes do Arena de Amesterdão: “Até contra estes cepos perdemos...”. Queriam o quê? Que o holandês, vaidoso e invariável no seu narcisismo cor-de-laranja, reconhecesse uma superioridade que não existiu? Holandeses: o povo mais presunçoso de que há memória. Mesmo reduzidos à cinza da mediocridade futebolística, a soberba será sempre o último bastião contra a irrelevância (estão a ver que futebol-moderno é futebol-fantasma?).
Futebol-moderno é futebol-fantasma e até a escolha daquele vermelho-integral-à-Liverpool parecia luto. Como se a sombra longínqua das finais perdidas de 1988 e 1990, em que o Benfica vestiu calções encarnados, alcançasse o Benfica actual. Como se, directamente do Além, Bella Guttmann nos soprasse ao ouvido: “Benfica... Benfica... quem abdica do seu passado... sacrifica o seu futuro...”. É bem provável que tenha sido isso. E é bem provável que tenha querido dizer isso quando lançou o seu vudu sobre a carreira europeia do Benfica durante os anos 60. Porque Guttmann, essa espécie de Fantasma do Natal Passado do Benfica, sabia bem o que nós também já sabemos; isso mesmo: que o futebol-moderno é futebol-fantasma.
Em Shakespeare (sempre ele) o fantasma nunca aparece por acaso. Quando surge é para anunciar a tragédia. Na abertura de Hamlet, o pai morto do príncipe dinamarquês surge nas muralhas do castelo para avisar que o reino está ferido e que se aproxima um infortúnio inevitável. Em Júlio César, o fantasma do Imperador aparece a Brutus para lhe dizer: “Thou shalt see me at Philippi”, que é como quem diz: em Filipos vais-me ver e depois vais perder e a seguir vais morrer. Que é exactamente o que lhe acontece.
O que nos acontecerá então a nós perante tais assombrações? Estou pessimista, sabem? Tudo me parece tardio, repetido. O que se move agora no Benfica parece o remake de um filme que já vimos há trinta anos. O protagonista era um treinador que tinha ganho tudo num dos rivais, depois veio para Lisboa.... Lembram-se? Estou a ter o déjà-vu neste preciso momento. Não desenvolvo mais. Os mortos falam por si.
É que nós vemos estas coisas e pensamos que ainda há tempo. Mas não há. Em cada serão, em cada récita, Hamlet é sempre o mesmo. E todo o Júlio César é sempre o mesmo. Assim também no Benfica está escrito — e não há nada que se possa fazer. Os fantasmas disseram o que havia a ser dito, a tragédia aconteceu, aguarda só que a reconheçam. Futebol-moderno é futebol-fantasma.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.
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