Odeio Futebol Moderno

João Vieira Pinto, demasiado humano

Mesmo agora, passado um quarto de século da sua ida do Benfica para o Sporting, continua a dividir famílias. Nunca houve transferência mais absurda. João Pinto com listas verdes era um paradoxo, uma serigrafia do impossível. E basta que dois ou três de nós se reúnam em nome do glorioso para se alinharem os opostos: para uns, foi todo o Benfica dos anos 90; para outros, foi a ruptura, o herege que saiu da forma errada, para o sítio errado

A notícia saiu na semana passada no Público e vale a pena ser lida (até porque não vos quero aborrecer com detalhes). Nela, ficámos a saber que João Vieira Pinto foi constituído assistente na Operação Lex — o processo que tem o juiz Rui Rangel como principal arguido e que investiga a alegada manipulação da distribuição de processos por magistrados —; e que, ali mesmo em tribunal, explicou finalmente e em voz alta o que esteve na origem do caso da fuga ao fisco que o condenou em 2012: o esquema montado por José Veiga (ex-presidente da Casa do Porto do Luxemburgo, então seu agente) e Luís Duque (antigo dirigente do Sporting e da Liga), para evitar o pagamento de impostos na sua transferência do Benfica para Alvalade.

Foram eles que lhe garantiram que a manobra era segura e que todos seriam absolvidos em segunda instância. 

E foram. 

Todos menos ele.

Para o João Pinto ficou o seguinte borrego: uma condenação com pena suspensa, o pagamento dos tais impostos, a humilhação pública, e um processo que, segundo o próprio, até os filhos irão herdar.

Soube-se agora que o juiz que o condenou recebeu o processo três meses antes do sorteio. É extraordinário; só mesmo um miúdo ingénuo como o João Pinto de então — que “não falava inglês nem francês”, que “não conseguia falar com bancos estrangeiros.”, que “não [fez] aquilo sozinho” —, entraria, sem se dar conta, na noite escura de uma engrenagem com estas características. Foi assim que percebeu — tarde demais — esta regra inflexível: quando a máquina precisa de um culpado, a máquina arranja-o: quase sempre o mais humano, o mais inocente entre os que estão por perto. Tal como ele tinha sido, naquele tempo em que, sobre as suas costas, carregou um Benfica ligado a soro, nos anos formativos do Vietname encarnado.

Bem sei que há quem não pense assim. Sei bem do estatuto de divergência doutrinal que a figura de João Pinto protagoniza no seio benfiquista. É, aliás, essa tensão entre homem e símbolo, realidade e mito, fragilidade e divino, o coração do que aqui vos trago hoje. 

Permitam-me, por isso, que prossiga e passe num instante por Friedrich Nietzsche.

Em Humano, Demasiado Humano, o alemão formula esta ideia: “Na moral o homem não trata a si mesmo como individuum, mas como dividuum” — um ser dividido, fraccionado, repartido pelos desejos, expectativas e projecções alheias. Ora, que melhor exemplo desse dividuum do que João Vieira Pinto, a quem chamavam “o Menino de Ouro”? Foi bode expiatório e foi símbolo, quando era apenas um homem de carne e osso, apanhado no vórtice de uma engrenagem assassina.

Para nós, que nascemos nos anos 80 e testemunhámos todo o esplendor das suas capacidades, a tensão entre mistificação e humanidade, que palpita em qualquer dos deuses do esférico, foi particularmente intensa com João Pinto. Não há metáfora mais perfeita para o compreender do que o penso que usava na cana do nariz e que, num ápice, se tornou obrigatório nos ringues e pátios de toda a escola de Norte a Sul de Portugal. Aquela espécie de auréola invertida parecia concentrar tudo: a fragilidade do rapaz rejeitado pelo Futebol Clube do Porto em criança; a efemeridade do adolescente preterido em Madrid; a vulnerabilidade do homem que nunca se fez ao estrangeiro, preferindo sempre permanecer na segurança daquilo que entendia ser sua casa. 

João Pinto tornou-se, assim, numa ambivalência, essa palavra proibida nos dicionários benfiquistas. O adepto encarnado precisa de símbolos para amar sem falhas e odiar sem senãos. João Pinto não permite nenhuma dessas facilidades. É um ferimento. 

Mesmo agora, passado um quarto de século da sua ida para o Sporting, continua a dividir famílias. Nunca houve transferência mais absurda. João Pinto com listas verdes era um paradoxo, uma serigrafia do impossível. E basta que dois ou três de nós se reúnam em nome do glorioso, para se alinharem os opostos: para uns, foi todo o Benfica dos anos 90, o ídolo da adolescência, o capitão que segurou o Benfica nos dentes; para outros, foi a ruptura, o herege que saiu da forma errada, para o sítio errado, o símbolo de um clube em curto-circuito existencial. Sabem que mais? Ambos têm razão. 

E, apesar de tudo, aquele absurdo fazia sentido. Por muito paradoxal que fosse imaginá-lo de riscas verdes e brancas, não se deu o caso de uma traição. Foi antes uma saturação, ou o exílio do último ser humano num clube de fantasmas. E assim, João Pinto nunca terá abandonado o Benfica, mas a assombração que assumia o seu lugar.

É por isso que a sua figura continua a inquietar; como um quisto sebáceo: ali, estático, sem se resolver. Não é bem a saída. Não é bem o clube rival. Nem o contrato vitalício que o transformou em escudo do Damásio; ou os rumores de balneários difíceis que teriam empurrado Paulo Nunes ou Donizete para fora do Benfica. O Diabo que os carregue a todos! O que pesa é que João Vieira Pinto foi o sintoma máximo da falência do Benfica nos anos 90.

Por isso escrevo, para que não se esqueça e se saiba que João Pinto não foi traidor nem foi mártir. Foi os dois. Como em qualquer homem cabe sempre tudo e o seu contrário. 

Os consensos benfiquistas costumam ser absolutos, mas este caso desconfirma a regra. O que é bom. É que consenso não passa apenas de uma maneira civilizada de mentira. E o João Pinto, humano demasiado humano, dividuum por nossa causa, individuum em causa própria, foi um homem de verdade.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.

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