Conheça as semelhanças e as diferenças que marcam as formas de estar e de trabalhar de dois dos melhores treinadores da história do futebol: José Mourinho, líder do Manchester United, e Pep Guardiola, líder do Manchester City
Tal como na astronomia, em que de 'x' em 'x' tempo nos deparamos com acontecimentos tão raros quanto esplendorosos, a Premier League reservou-nos para a época 2016/17 o reencontro de dois dos melhores treinadores que o desporto e o futebol já nos concederam. E logo na mesma cidade. O mediatismo de Guardiola e Mourinho, ou de Pep e José, é tal que quase relega para segundo plano nomes vitoriosos e excecionais como Conte, Klopp, Wenger, Pochettino, Ranieri e muitos outros que compõem o conjunto de elevado nível de treinadores a trabalhar em Inglaterra.
A discussão não é se a Premier League é a melhor liga do mundo ou não, mas que esta época tem tudo para ser uma liga fenomenal, tem. Guardiola e Mourinho aportam muito mais do que o espetáculo dentro das quatro linhas. Quase que nos prometem a possibilidade de aprendermos mais sobre algo que é superior ao próprio jogo em si. Sobre a gestão de pessoas. A sua liderança, o modo como comunicam, como irão gerir os conflitos e como elevam a fasquia naquilo que é a área motivacional dos atletas. Áreas cada vez mais estudadas e com maior peso no rendimento do atleta e da equipa.
Com mais um título do que Guardiola, precisamente aquele conquistado ao serviço dos red devils frente ao Leicester no início de agosto, Mourinho pretende agarrar uma liga que tem sido um dos seus habitats preferidos. O português não olhou a meios para rechear a sua equipa com aquilo que é muito o seu ADN e não tarda dará uso das competências comunicacionais que são muito o apanágio das suas épocas desportivas.
O reencontro surge numa fase diferente das suas carreiras. Distantes já parecem os tempos do confronto em Espanha, em que uma Liga vivia em redor de dois treinadores. Hoje temos um Guardiola menos emocional e até poderíamos afirmar que se aproximou em termos cognitivos mais da figura do Mourinho que foi pela primeira vez para o Chelsea. Mais pragmático e menos o treinador educador. As suas equipas continuam a ser o espelho da sua identidade enquanto conceção do que deve ser o jogo, a busca pela inteligência coletiva e o modo como o todo convive.
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As lideranças de Pep e José são diferentes. Se pensarmos que a liderança agrupa as características individuais do líder, os seus comportamentos, crenças e sentimentos e ainda as questões situacionais e contextuais, percebemos que podemos encontrar padrões semelhantes em alguns treinadores. No entanto, um padrão totalmente igual é quase impossível. Neste caso é fácil afirmarmos que são distintos. E em alguns aspetos, até opostos.
Os jogadores nos bastidores afirmam que Mourinho ‘aponta’ à mente enquanto Guardiola ao coração dos jogadores. O que podemos retirar é que o português gosta de comprometer, alinhar e casar os seus ideais com a forma de estar dos jogadores. O catalão prefere cativar e estimular com a sua paixão e os seus ideais de jogo. Bem sei que o termo ‘liderança maquiavélica’ é conotado com algo de negativo. Mas este estilo tem algumas características bastante eficientes e Mourinho possui alguns desses denominadores: perspicaz, planeador nato, manipulador em termos das relações interpessoais. E reforço, não é na perspetiva de o fazer mal, mas de se assegurar que tudo corre como previamente planeado.
Pep é meio intelectual, meio de esquerda, gosta de poesia. Catalão e defensor da independência. Nas perguntas em inglês ou alemão, responde na mesma língua. Nas perguntas em castelhano responde geralmente em catalão. Quando viveu em Itália, viajou bastantes quilómetros para poder conhecer pessoalmente o treinador argentino de voleibol Julio Velasco, simplesmente porque tinha visto uma entrevista do argentino na televisão e queria muito aprender com ele. Pep possui um livro da sua autoria, ‘La meva gente, el meu futbol’, ou seja, ‘Minhas pessoas, meu futebol’.
Mourinho e Guardiola são perfecionistas. A este nível não existe outra hipótese. Muito focados nas regras coletivas, de modo a não se porem a jeito. São excelentes comunicadores, mas com aspetos muito distintos. Temos a noção que, para Mourinho, ser ator é algo quase intencionalmente genuíno. O português antecipa e prepara-se de modo mais pragmático. O catalão é mais puro, embora a passagem por terras bávaras o tenha modificado um pouco no modo como comunica para fora, tendo-se tornado mais comedido.
A exigência é um dos denominadores comuns mais valiosos dos treinadores vencedores: a sua autodeterminação em focar-se sempre mais em si e num primeiro momento do que nos outros. Não como sinónimo de egoísmo ou centralismo, mas sim, porque faz parte da exigência e capacidade de querer ser sempre melhor naquilo que fazem.
Rui Lança é o autor de um livro que analisa a fundo as lideranças de Pep Guardiola e José Mourinho
Ao analisar os dois treinadores, cremos que se encaixam num conjunto de comportamentos e crenças que se incluem numa liderança transformacional, dado que ela transforma os objetivos ou capacita os jogadores a colocarem os seus objetivos individuais (e todos têm) para um plano, não direi em segundo plano, mas no mínimo alinhados e complementares. O líder consegue comprometer os atletas de um modo a que estes compreendam que os seus objetivos individuais, se forem compatíveis com os da equipa, ficam mais facilmente exequíveis se os objetivos coletivos também forem atingidos.
Uma das áreas interessantes que os distingue é o modo como conseguem delegar a sua liderança. Mourinho é mais controlador que Guardiola, mas mesmo assim, ambos sabem que apenas se vence se os jogadores conseguirem compreender como agir em função daquilo que é definido pelo treinador. Mourinho delega em jogadores-chave. Aqueles que preenchem os requisitos humanos que Mourinho considera serem as regras ‘sagradas’. Guardiola mais por zona do campo. E aqui percebe-se o referido anteriormente: Mourinho muito em função daquilo que os jogadores afirmam ser e Guardiola do que os jogadores podem e devem fazer em função do campo.
Os adeptos esperam sempre algo mais em termos de liderança destes dois treinadores. Mourinho chegou a Itália a falar italiano logo na apresentação, deixando-nos água na boca que já se preparava para o desafio primeiro do que todos os outros. Guardiola fez o mesmo ao ir para Munique. O português voltou a brilhar na primeira época da segunda passagem pelo Chelsea, mas falhou em algo na seguinte e em campos pouco habituais. Guardiola apostou – como aposta quase sempre – na inovação tática como modo de se motivar e a quem trabalha com ele, mas não conseguiu a cereja no topo do bolo, que seria vencer a Liga dos Campeões.
Estas próximas épocas não serão apenas batalhas internas, pois Inglaterra quer voltar a colocar equipas no mapa das vitórias europeias e a cidade de Manchester concorre para esse fim. A equipa de Mourinho é a grande candidata à Liga Europa e o City quererá reforçar o estatuto de equipa presente nas fases a eliminar da Liga dos Campeões. Para já, é sentar e aproveitar o dérbi de Manchester e perceber como vai ser este jogo de xadrez, tendo a perspetiva que de um lado temos um jogador que joga mais no risco e outro que prefere jogar na segurança.
Um United que está a voltar um pouco ao que eram os red devils de Ferguson, na característica da alma, do compromisso com uma visão e com mais do que um clube, um modo de estar e sentir a ‘casa’ de Old Trafford. Guardiola, como sempre, a aproximar o City à imagem do que era o seu Barça e o Bayern no que diz respeito à posse de bola, à tentativa de fazer as coisas bem feitas. A posse de bola garante-lhe mais segurança, é verdade, porque possui a bola em sua posse. Mas também a expõe mais relativamente a equipas mais pragmáticas como são geralmente as equipas de Mourinho.