Opinião

O homem que dormia a sono solto (e não acordava sozinho)

O homem que dormia a sono solto  (e não acordava sozinho)

Pedro Cruz

Subdiretor de informação da SIC

Andava eu pelo décimo ano, em meados da década de oitenta do século passado, e fazia, todos os dias, a viagem entre casa e a escola de comboio.

Os comboios têm, entre outras vantagens, uma coisa de bom: toda a gente se conhece, porque os hábitos são regulares, tal como os horários.

Adiante.

Todos os dias, chegado à estação de destino, pela manhã, havia sempre um passageiro que era preciso ir acordar – sim, porque nos comboios, o ultimo a sair da carruagem tinha uma vantagem e uma missão: a vantagem era ficar com os jornais da manhã que vários outros passageiros abandonavam depois de ler; a missão era acordar os que nem se davam conta que já tínhamos chegado ao fim da linha.

No troço que liga o Porto à Póvoa de Varzim, eu entrava a meio do caminho e ele já lá estava, todo encolhido, com um saco de desporto daqueles minúsculos a fazer de almofada.

Ocupava sempre dois lugares, mas ninguém se importava muito com isso.

Dormia a sono solto, aconchegado, cabeça virada para a janela, pés para a coxia e a vida toda dentro da carruagem passava-lhe ao lado.

Dormia, apenas, um sono reparador.

Todos os dias tinha uma missão: acordá-lo.

Primeiro só com um toque leve, depois, às vezes, com mais força, e um

- Já chegámos

E ele, estremunhado, levantava a cabeça, a custo, e lá se punha de pé, era sempre o último a sair, devia pensar

(- olha este a acordar-me)

Mas agradecia,

-obrigado

E lá saía, saco de desporto minúsculo debaixo do braço, estação fora, mais meia hora a pé até chegar ao estádio, que ficava longe.

Dentro do campo nem parecia o mesmo.

Era ágil, rápido, sempre pronto.

Cresci a vê-lo jogar no meu Varzim, a admirar aquele meio campo.

Ao domingo, aos domingos, quando os jogos eram sempre ao domingo, “A Bola” era um trissemanário e o totobola fazia milionários, ao domingo vibrava com ele dentro do relvado.

Durante a semana, o mestre era apenas um passageiro.

Melhor: o passageiro.

O senhor que ficava a dormir a sono solto, a ocupar dois bancos, o que eu acordava.

Nunca lhe disse, até hoje, que também o via ao domingo. Acordado.

Chama-se Rui Barros. E cabia bem nos dois lugares do comboio.

*Rui Barros foi jogador do Varzim Sport Clube nas épocas de 85/86 e 86/87

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