Andava eu pelo décimo ano, em meados da década de oitenta do século passado, e fazia, todos os dias, a viagem entre casa e a escola de comboio.
Os comboios têm, entre outras vantagens, uma coisa de bom: toda a gente se conhece, porque os hábitos são regulares, tal como os horários.
Adiante.
Todos os dias, chegado à estação de destino, pela manhã, havia sempre um passageiro que era preciso ir acordar – sim, porque nos comboios, o ultimo a sair da carruagem tinha uma vantagem e uma missão: a vantagem era ficar com os jornais da manhã que vários outros passageiros abandonavam depois de ler; a missão era acordar os que nem se davam conta que já tínhamos chegado ao fim da linha.
No troço que liga o Porto à Póvoa de Varzim, eu entrava a meio do caminho e ele já lá estava, todo encolhido, com um saco de desporto daqueles minúsculos a fazer de almofada.
Ocupava sempre dois lugares, mas ninguém se importava muito com isso.
Dormia a sono solto, aconchegado, cabeça virada para a janela, pés para a coxia e a vida toda dentro da carruagem passava-lhe ao lado.
Dormia, apenas, um sono reparador.
Todos os dias tinha uma missão: acordá-lo.
Primeiro só com um toque leve, depois, às vezes, com mais força, e um
- Já chegámos
E ele, estremunhado, levantava a cabeça, a custo, e lá se punha de pé, era sempre o último a sair, devia pensar
(- olha este a acordar-me)
Mas agradecia,
-obrigado
E lá saía, saco de desporto minúsculo debaixo do braço, estação fora, mais meia hora a pé até chegar ao estádio, que ficava longe.
Dentro do campo nem parecia o mesmo.
Era ágil, rápido, sempre pronto.
Cresci a vê-lo jogar no meu Varzim, a admirar aquele meio campo.
Ao domingo, aos domingos, quando os jogos eram sempre ao domingo, “A Bola” era um trissemanário e o totobola fazia milionários, ao domingo vibrava com ele dentro do relvado.
Durante a semana, o mestre era apenas um passageiro.
Melhor: o passageiro.
O senhor que ficava a dormir a sono solto, a ocupar dois bancos, o que eu acordava.
Nunca lhe disse, até hoje, que também o via ao domingo. Acordado.
Chama-se Rui Barros. E cabia bem nos dois lugares do comboio.
*Rui Barros foi jogador do Varzim Sport Clube nas épocas de 85/86 e 86/87
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