"Um Benfica-Cucujães mexe mais comigo que um Barça-Madrid, mas se houve jogador que me fez feliz a ver futebol com prazer foi Messi", escreve Manuel Neves. "A certa altura, acreditei que isto ia ser para sempre. Que sempre que estivesse chateado com uma receção do Seferovic, ia poder mudar de canal e ver um daqueles passes à baliza dele, ao mesmo tempo simples e impossível"
Manuel Neves (Lá em casa Mando Eu)
Quando recebeu a sua sexta Bola de Ouro, em 2019, Messi falou da possibilidade de retirar-se, da necessidade de desfrutar dos anos que lhe faltavam. Foi um momento agridoce no meio da sua celebração: considerado outra vez o melhor do mundo, o argentino falava da possibilidade de deixar de jogar. Parecia só um esgar de humanidade e melancolia num jogador cuja qualidade se sobrepôs mais que exponencialmente ao seu carisma, mas serviu como aviso. No dia em que se retire será o fim de uma era, o devolver do futebol aos mortais, para quem – ao contrário de Messi – será mais fácil encontrar adjectivos. Foi como se o Super-Homem anunciasse que ia para uma quinta no Kansas gozar uma reforma com a Lois Lane.
Mas, há uns dias, aquilo que seria apenas uma nota de rodapé e um aviso para o facto de estarmos todos a envelhecer tomou outras proporções: da maneira mais seca, depois de uma derrota humilhante e após vários episódios tristes protagonizados pela direcção do FC Barcelona (entre os quais a contratação de uma empresa para criação de perfis falsos online para perseguição de opositores e dos próprios jogadores), Messi anunciou que quer mudar de clube. O Super-Homem anuncia que quer mudar de fato e é natural que o mundo pareça mais frágil.
Javier Marías, madridista convicto, dizia que o FC Barcelona cultivava um espírito “artístico e frágil”, que sempre foi uma equipa dramática, com uma percepção permanente da próxima derrota, da sua ameaça e, portanto, da sua compreensão (sacana de escritor maravilhoso). Falamos do clube que conseguiu ter nos seus quadros Maradona, Schuster, Romário, Laudrup, Figo, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho e que todos saíssem a mal. Messi parece o próximo e é preciso uma capacidade de auto-destruição militante, quase sportinguista, para o conseguir.
Não sou simpatizante do Barça e apesar do interesse histórico em perceber como se reconstruirá um clube depois da saída do melhor jogador de sempre, dói-me mais perceber que o fim da carreira de Messi está perto. Sou benfiquista e benfiquista doente – interessa-me mais que o Benfica ganhe do que analisar quem é o número 6 que mete mais bolas verticais entre as linhas adversárias (limito-me a torcer para que esse seja o Weigl e pronto). Um Benfica-Cucujães mexe mais comigo que um Barça-Madrid, mas se houve jogador que me fez feliz a ver futebol com prazer foi Messi (e aqui falo de futebol como uma actividade prazerosa por ser justamente extra-Benfica. O futebol extra-Benfica é um prazer como ler as tropelias do Raposão n`”A Relíquia” do Eça. Ver o Benfica é estudar “Os Maias” para exame: interessa é ganhar).
A primeira grande exibição de Messi que me lembro foi na Champions de 2005-2006, em Londres. Arrasou Del Horno e o Chelsea de Mourinho – numa das primeiras batalhas contra aquele que seria o Lex Luthor deste Barcelona. Era um extremo daqueles muito mexidos, de drible, e fez a vida negra ao lateral.
A estrela da equipa era Ronaldinho Gaúcho e aquilo pareceu-me só o jogo de uma vida de um tipo com ar esquisito, quase autista. O astro brasileiro – que parecia um futebolista quase incomparável nessa época – foi-se progressivamente apagando e o Barça, numa dessas crises Shakesperianas de que falava Javier Marías, entrega as chaves o castelo a Messi. Pareceu-me uma atitude completamente desproporcional, até ao embate com o Manchester United, nas meias finais da Champions de 2007/2008, em que há um lance em que Messi encara Paul Scholes e faz dele um pino. Vi o jogo sempre com os olhos nele, espantado com a sua evolução– mal eu sabia o que aí vinha.
É o estilo de drible que fará centenas de vezes. Um conjunto de simulações de corpo (sobretudo anca) até contornar o adversário (com um pé preso). Uma capacidade transcendente – quase sobre-humana – para saber o exacto segundo em que o adversário está preso ao chão, incapaz de mudar de lado, incapaz de o travar em falta.
À época, Messi joga a extremo direito, mas começa a sentir-se a capacidade de liderar, de pedir a bola para tentar decidir. É o momento em que me rendo e o começo a seguir. Em que, se o Barcelona estiver a jogar, mudo de canal para o ver. A ele. Depois a de anos e anos a ver futebol, a ver craques, de Romário a Baggio, de Zidane a Ronaldinho, descubro Messi.
O que se segue, a seguir, é a tempestade perfeita. O Barça de Guardiola é artístico e, durante algum tempo, desprovido de tragédia. Messi torna-se a estrela maior de uma orquestra nunca antes vista, de passe e corte. A 2 de Maio de 2009, antes do jogo decisivo do campeonato no Bernabéu, Guardiola muda-o para o meio. É como se Colombo partisse o ovo e o ovo não ficasses só de pé, mas acabasse com a fome no mundo. Messi torna o seu jogo progressivamente mais dominante e mais abrangente. Uma assistência e dois golos, ensaio para os 5-0 de 2010/2011, quando atinge o nível Michael Jordan.
A partir daqui, percebo que em cada jogo dele há qualquer coisa de incrível e de impossível. Um passe que só ele é que vê, um drible, o que for. Ver Lionel Messi tornou-se, para mim, uma obrigação porque sabia que, mais tarde ou mais cedo, se irá retirar e não acredito que, no meu tempo de vida, veja igual. Não pretendo, com este texto convencer ninguém. Messi luta contra um fantasma que teve em Burruchaga e não Palacios e contra um Salieri com o qual compartilho nacionalidade e nada mais. Nas palavras de Sampaoli, comparar Messi a outro futebolista é como comparar um polícia ao Batman, mas – dizia – não vos pretendo convencer. Messi convenceu-me a mim e isso é que me interessa.
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(O que Palacio falhou em 2014 e o que Burruchaga não perdoou em 1986, contribuindo para uma discussão eterna)
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No livro “La Biblía Blanca: História Sagrada del Real Madrid”, uma das melhores definições de Messi: “Messi é aquilo que tu desejas aos teus inimigos”. A partir de 2013, já com Guardiola fora do Barça, dá-se nova metamorfose do argentino. O extremo pequenino e irrequieto transformou-se, como um super vilão que adquire os poderes das vítimas. Torna-se, por exemplo, um marcador absurdo de bolas paradas (em 2010-12, fazer faltas mesmo à entrada da área era um dos mecanismos preferenciais para parar o Barcelona. Hoje, seria como fazer penalties consecutivos).
Transforma-se num goleador extraterrestre ao mesmo tempo que assiste como ninguém. Domina a arte de dar a bola no tempo certo e só depois de atrair o máximo de rivais. O jogo muda por sua causa: há anos e anos que todas as equipas entram em campo a pensar nele, com vários planos, com mudanças, cientes que defrontam o pior dos inimigos. E, ainda assim, Messi continua a evoluir. Não é extremo, não é falso nove, mas é tudo. Torna-se imortal a sua imagem a andar, a tirar radiografias ao adversário, antes de desferir o golpe final.
“O filho da experiência mais bem-sucedida de socialismo utópico da história da Humanidade”, como escreveu, na Tribuna, Bruno Vieira do Amaral, torna-se um computador de xadrez avançado no meio de um terreno de futebol. Só chuta praticamente pela certa, não desperdiça balas. Usa o drible só quando tem que ser (e, ainda assim, segundo o site The Athletic, na sua pior época em termos de dribles efectuados por 90 minutos, foi o terceiro melhor das 5 grandes Ligas. Na sua pior época).
Tornou-se um autómato de obras de arte, colocando a bola em arco com o pé esquerdo com uma eficiência fordiana. Habituei-me a ver, bastando apenas mudar de canal, golos como o que marcou ao Betis, um chapéu tão elegante quanto eficaz. O suspiro do guarda-redes Pau Lopez é o momento conformado de quem sabe que enfrentou uma entidade superior. Reparem nos dois passos perfeitos que dá antes do remate, mais espaçados, de quem já sabe como vai bater na bola e na corrida sempre aberta para o pé esquerdo. Para ele, é como respirar. Aos 01:06 é possível ver dois jogadores do Betis a colocarem as mãos na cabeça, como quem vê cair o ateísmo de uma vida. Eu, pelo menos, já acreditava nele há uns anos.
Há muitas lendas não filmadas sobre ele e todas elas bebi: Fàbregas a descrever quando teve que o enfrentar num um contra um no primeiro treino e pediu para trocar à primeira oportunidade. Henry a descrever um golo num treino em que fintou toda a gente e mais alguma, chateado com uma falta não marcada.
E foi de tal modo constante a sua espectacularidade – estamos a falar de pelo menos doze anos a “ser Maradona todos os dias”, segundo Valdano – que acho que, a certa altura, acreditei que isto ia ser para sempre. Que sempre que estivesse chateado com uma receção do Seferovic, ia poder mudar de canal e ver um daqueles passes à baliza dele, ao mesmo tempo simples e impossível.
Ao que tudo indica, Messi sairá do Barcelona, colocando a sua carreira noutra fase, deixando Barcelona a arder e ligando o tempo de descontos do seu futebol. Já nostálgico, verei com sofreguidão PSG, Inter ou Manchester City. Vai ser esquisito e confuso, vamos ter que nos habituar, mas tem que ser. Se o Super-Homem vai mudar de fato, eu vou querer vê-lo na mesma. Quando ele o pousar, temo nunca mais ver ninguém a voar.